Tirando as pedras do caminho
Drama do crack cresce sem controle, mas missões evangélicas mostram que saída é possível
 Por TALITA CARNEIRO
Sexta-feira, dez horas da noite. Em ruas semidesertas da maior cidade  brasileira, homens, mulheres e crianças disputam as sarjetas e calçadas  com ratos e sacos de lixo. O movimento é intenso e a variedade de tipos  humanos, também; vestidos com farrapos ou roupas da moda, dezenas de  pessoas negociam freneticamente cigarros, cachimbos, estiletes, comida  com validade já vencida e, principalmente, pedrinhas de crack. A cena se  passa na região da Luz e Santa Ifigênia, em São Paulo, mas se repete  todas as noites – e à luz do dia, também – tanto nas grandes cidades  brasileiras, como Rio de Janeiro, Brasília e Salvador, como em  pequeninas localidades. Sim, o crack é hoje problema de saúde pública de  dimensão nacional, uma chaga que assusta a sociedade, preocupa o  governo e destrói mentes e corações.
Droga de preço acessível mesmo a miseráveis – pode-se conseguir uma  dose por um ou dois reais –, o crack é feito de sobras do refino da  cocaína misturadas com outras substâncias químicas como bicarbonato de  sódio e amônia. Chegou ao Brasil no final da década de 1980 e nos  últimos cinco anos tem feito um verdadeiro arrastão pelo país. O  Ministério da Saúde já o considera problema de saúde pública. De acordo  com dados do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas  (Cebrid), quase 200 mil brasileiros estão viciados. A maioria deles  começou a consumir “a pedra”, como é chamado o crack, entre os 13 e 26  anos. Enquanto se lê esta reportagem, boa parte deles estará consumindo o  entorpecente ou tentando arranjar algum dinheiro para comprá-lo, seja  vendendo alguma coisa de casa, endividando-se com traficantes ou  simplesmente roubando.
Se o quadro já parece alarmante, as imagens e histórias de quem é  dependente só   (continue lendo)
reforçam a dramaticidade da situação. Tatiele não aparenta  ter 29 anos. É miúda e magrinha, tem o cabelo curtinho, mãos trêmulas e  fala acelerada. Há quatro meses, saiu de Campinas, no interior de São  Paulo, deixou os dois filhos com a mãe e está morando na Cracolândia  paulistana. “Não queria estar nessa vida, mas a pedra prende a gente de  tal forma que, depois de uma semana usando, você já está completamente  dependente”, desabafa a moça. Aos 12 anos, ela começou a fumar maconha, e  logo partiu para a cocaína. “Isso não é vida”, faz coro Érica, que  desde os 16 mora nas ruas do centro de São Paulo. Hoje, tem 28 anos,  seis passagens pela polícia por furto, hematomas pelo corpo todo e uma  cortante solidão. “Minha mãe e irmã morreram”, conta. “Não tenho amigos,  nem sequer uma pessoa em que possa confiar”, diz, deixando as lágrimas  escorrerem pelo rosto.Farrapos humanos como Érica perderam completamente a esperança em  determinado momento da vida. Mas enquanto aguarda para tomar banho nas  dependências de uma instituição mantida por evangélicos, ela tem ao  menos algum alento. “Deus nos faz nova criatura”, brada o pastor  Humberto Machado para um público de mais ou menos 50 pessoas, entre  dependentes químicos, homossexuais, sem-tetos e também obreiros, em sua  maioria ex-viciados. Três cachorros alertas até parecem também entender a  mensagem. O culto é o primeiro dos três que acontecem diariamente na  igreja, que oferece também alimentação, banho e roupas, e foi montada em  um salão da Rua Barão de Piracicaba, um dos braços da Cracolândia.  “Começamos esse projeto na Primeira Igreja Batista, mas Deus colocou em  nosso coração que era preciso estar mais perto para transformar essa  realidade” conta Ricardo, o obreiro responsável pelo espaço. Ele deixou  as drogas em 2008, e a fé teve papel fundamental em sua recuperação. “Eu  quero que as pessoas tenham acesso a essa liberdade e paz que eu sinto  hoje”, diz.
Envolvimento – A Cristolândia, como é chamado o  projeto, em um mês de funcionamento enviou 30 pessoas para casas de  reabilitação. O número parece pequeno perto do tamanho do problema, mas,  só para ter uma idéia, a Prefeitura de São Paulo, após mais de oito  meses de atuação intensiva na região – com a Ação Integrada Centro Legal  –, conseguiu encaminhar apenas 190 pessoas para internação. “Não  adianta colocar agente de saúde, polícia ou assistente social, gente que  só está aqui para cumprir protocolo. É preciso envolvimento”, afirma a  missionária Nildes Nery, que há cinco anos saiu de Salvador (BA) com  marido e duas filhas para morar e resgatar vidas na Cracolândia, através  do Projeto Retorno. Distribuindo lanches duas noites por semana e  oferecendo, além de auxílios básicos, carinho, a pastora do Ministério  Quadrangular conquistou o afeto e confiança dos moradores de rua,  prostitutas e viciados da região. “Não há nenhuma novidade no que faço”,  minimiza. “Só sigo aquilo que Jesus mandou. O mais importante dessa  obra sempre será o amor”, frisa.
Pioneira na região, a Comunidade Evangélica Nova Aurora (Missão Cena)  compartilha o amor de Deus com os excluídos desde 1987. Tudo começou em  uma borracharia da Rua Aurora, conhecida zona de prostituição do centro  ca capital paulista, onde o pastor Nivaldo Nassif fazia cultos às  sexta-feiras. “Era a chamada Noite de Paz’” conta o missionário João  Antonio, o Jota. Com a chegada de voluntários americanos, suíços e  alemães, o projeto foi crescendo e ganhando novas áreas de atuação,  junto a crianças e adolescentes em situação de risco e prostitutas. E,  em 1991, a missão foi fundada oficialmente, contando com uma sede na  Avenida General Osório, a conhecida Casa Amarela, e um terreno em  Juquitiba, onde funciona o centro de reabilitação Fazenda Nova Aurora.
Na Casa Amarela, prostitutas, travestis, meninos de rua e viciados  recebem atendimento médico e odontológico, assistência jurídica, comida,  banho e roupa. E também ouvem a palavra transformadora do Evangelho. Os  dependentes químicos têm a oportunidade de serem encaminhados para  atendimento especializado e, se assim desejarem, receber a Cristo como  Senhor e Salvador. À noite, os missionários saem pelas ruas para  conversar com os usuários de crack e lembrar-lhes que é possível mudar.  “É preciso cuidar daqueles que já caíram no vício, mas também de quem  corre o risco de entrar nessa. Por isso, na Casa, temos atividades com  jovens e crianças que moram nos prédios da região”, diz Jota.
Adrenalina fatal – Essas iniciativas mostram que, se  há muitas pedras no caminho, há  também cada vez mais mãos dispostas a  remove-las e a cuidar das feridas de quem foi machucado pela vida.  “Primeiro, precisamos oferecer esperança, para depois construir o  conceito de fé”, defende o pastor Junior Souza, da Vineyard, igreja  focada em missões urbanas. E é preciso admitir que o processo de  libertação nem sempre é rápido ou sem recaídas. “E isso muitas vezes  acontece porque a igreja e as famílias não estão preparadas para receber  essas pessoas, mesmo quando já não consomem drogas”, diz Ricardo. Uma  estatística impressiona: segundo levantamentos das entidades cristãs que  atuam com este segmento, cerca de 70% das vítimas do crack já  frequentaram ou ao menos tiveram algum envolvimento com igrejas  evangélicas.
Benedito, homem na casa dos 30 anos, de estatura média e extremamente  amável, sentiu isso na pele. “Fui internado três vezes. Numa delas, fui  batizado e arrumei um emprego. Mas, quando saí da casa de reabilitação,  não tinha ninguém realmente ao meu lado, toda a minha história estava  vinculada à droga”, relata. “Acabei usando o meu primeiro salário, de R$  700, para ficar durante meses na Cracolândia”. Na quarta internação,  parou para pensar no que havia ganho durante os sete anos em que viveu  de maneira praticamente exclusiva para o vício. “Percebi que só perdi  emprego, família e dignidade”, conta, com a voz embargada. “Com a ajuda  dos irmãos e com força de vontade, decidi que não iria mais cair nessa  armadilha do diabo. Hoje posso passar no meio das pessoas consumindo  crack sem me entregar à vontade de usar. Deus trabalhou no meu espírito,  o que supera qualquer desejo físico.”
Não é fácil ignorar as seqüelas da droga no corpo, mesmo quando ela  não está mais presente na vida do ex-viciado. “Dizem que o efeito do  crack é como o de oito orgasmos em, no máximo, doze segundos” conta  Ricardo, que atua na Missão Cena. Isso pode é biologicamente explicado  porque o conjunto de substâncias contidas na pedra atua com a dopamina,  neurotransmissor químico responsável pelas respostas do corpo ao prazer.  Com isso, ao usar a droga, o viciado fica mais agitado e,  consequentemente, libera mais adrenalina, o que, em alguns, casos pode  se fatal, levando a um infarto. Como o prazer e agitação são  extremamente efêmeros e passageiros, em poucos segundos o usuário está  desanimado, depressivo e com náusea, o que desperta a “fissura”, ou  seja, a busca incessante pela próxima dose.
Apesar das consequências nocivas ao corpo, a questão principal não é  essa. “A maioria das pessoas que usam drogas, sejam lícitas ou ilícitas,  não tem problemas de saúde e nem precisam ser tratadas por conta  disso”, diz o médico Raul Gorayeb, ex-coordenador do Centro de Atenção  Psicossocial (Caps) do Centro de São Paulo. Gorayeb foi afastado do  cargo em fevereiro deste ano por discordar dos métodos do órgão oficial.  “Para cuidar dessas pessoas, nós não temos que internar, mas sim ganhar  a confiança delas, levar para um abrigo e verificar a existência de  vínculos familiares”, explica.
É nessa lacuna que os obreiros evangélicos atuam: “Ganhamos muito  respeito por parte dos órgãos públicos que trabalham na região, porque  nos relacionamos com os usuários e não apenas os ‘atendemos’ ou  ‘abordamos’, como se diz”, aponta a pastora Neldecy. Em todas as  missões, a base da atuação é o diálogo e a aproximação com os  dependentes, que, depois de pouco tempo, reconhecem nos missionários  pessoas em que podem confiar. “A igreja, muitas vezes, tem que fazer o  papel da família, cuidar das ovelhas”, defende Ricardo, da Cristolândia.  E em uma coisa todos concordam: é preciso de fato ver essas pessoas, e  não simplesmente encará-las como parte de um cenário triste.
Fonte: Cristianismo HojePara saber mais sobre o trabalho evangélico na Cracolândia, você pode entrar no site da Missão Cena (www.missaocena.com.br), acompanhar o twitter do projeto Retorno (@projetoretorno) ou ligar para lá (11/3371-1264) e visitar a Cristolândia (Alameda Barão de Piracicaba, 509, Luz; aberta todos os dias das 9h às 21h). Há campanhas muito interessantes contra o crack encabeçadas pela Secretária da Saúde (www.nuncaexperimenteocrack.com.br) e pelo Grupo RBS (www.cracknempensar.com.br) também.
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