Porque não deixemos de lado um pouco nosso conforto para pensarmos e agirmos por uma sociedade melhor?
O legado de Pedro  Yamaguchi
O corpo de Pedro Yamaguchi Ferreira, de 27 anos, filho do deputado federal Paulo Teixeira (PT/SP), foi encontrado na tarde do dia 03 de junho, no Rio Negro, a 40 quilômetros do município de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas. Pedro trabalhava na Pastoral Indígena.
Abaixo reproduzo discurso feito por Pedro durante missa  antes de sua  despedida de São Paulo antes de embarcar para o Amazonas. O  texto está  publicado no blog de seu pai.
Penso que, diante de toda a realidade miserável que pude ver, não posso ficar inerte, tocando minha vida como se a vida do outro nada tivesse a ver com a minha. Me sinto na obrigação de colaborar com nosso povo.
Queridos familiares. amigos e amigas. Em primeiro lugar, quero dedicar essa missa a minha madrinha Glaucia, que nos deixou há uma semana. Tenho um sentimento de que ela vai olhar por nós e alegrar um pouco mais o céu. As maiores lembranças que tenho dela são o seu sorriso e sua luta pela causa ambiental. De alguma forma, sinto que posso dar seguimento ao que ela tanto ensinava como geografa e professora. Essa missa é em memoria dela.
Quero agradecer a cada um de vocês pela presença nesta noite, isso representa muito pra mim e me dá muita força para seguir a caminhada. Celebramos hoje, na Igreja da Boa Morte, a vida, a esperança de dias melhores.
Sei que  não estamos reunidos esta noite por mim apenas: todos os que  estão aqui  querem um mundo melhor para si; para seus filhos. Todos  queremos paz,  alegrias, amizade, justiça. Este encontro serve para  renovarmos nossos  sonhos.
Agradeço  de forma especial as pessoas que prepararam com tanto  carinho essa  missa: a Marcelo da Pastoral da Juventude, a Pe Valdir e  dona Vera, a  toda a comunidade alianca da Misericordia, nas pessoas de  Pe Enrico e  Antonelo, ao pessoal da banda e a todos e todas que  permitiram que esta  noite acontecesse. Pe Valdir, aliás, que foi o pai  desta minha ideia  de ir pra Amazônia. Desde fazer contato com o bispo de  São Gabriel da  Cachoeira, até falar com todos os padres e irmãs para  que autorizassem  meu envio. Muito obrigado por toda a ajuda, Pe Valdir.
Quero saudar meus amigos da alianca da misericórdia. Por ceder essa igreja, que é vossa casa.
Saibam  que vocês têm enorme influência na minha vida e nessa minha  decisão:  desde o primeiro momento, quando conheci um montão de jovens  que  moravam na favela do moinho e faziam pastoral carcerária, logo  fiquei  encantado com o que vi.
Eram  jovens dedicando suas vidas a melhorar a realidade dos mais   marginalizados: os moradores de favelas e os encarcerados.
Nas muitas vezes que  estive com eles, sempre me identifiquei com  aquela vocação e sentia  alguma coisa arder mais forte no meu peito.  Sabia que faria algo  parecido.
Vocês vivem a solidariedade na essência na palavra, vivem pela causa social com compromisso e verdade.
Parabéns  e muito obrigado pelo exemplo.
Quero  abraçar todos meus familiares. Meus tios e tias, pais e mães  pra mim, e  meus irmãos. Meus primos e primas, que são meus outros irmãos  e irmãs.  Carrego voces no coração, assim como carrego a lembrança de  meus  quatro avós, os quais tive a enorme felicidade de conhecer e  conviver.  Sinto que eles estão comigo. Sempre os senti por perto e sei  que eles  nos protegem. Dedico também a eles minhas alegrias.
Brindo com todos meus  amigos e amigas, da rua, de colégio, de  faculdade, das lutas, da vida.  Pela amizade e companheirismo. Obrigado  por me ensinar. Espero que  nossa amizade possa ser preservada e se  fortalecer ainda mais, nos  sentimentos de solidariedade com os outros,  no amor pelo país, na luta  por mais igualdade social, autonomia e  liberdade das pessoas e  tolerência com as diferenças. Tamo junto!
Aos amigos dos meus pais, que se tornaram meus amigos. Obrigado por todo exemplo de luta e dedicação a uma militância que exigiu muito tempo do lazer e conforto de vocês e de suas famílias. Carrego vocês comigo também! Muito obrigado pela presença.
Agradeço o  carinho dos amigos de Carlos de Foucalt. Obrigado pela  amizade e  acolhida. Terei mais oportunidade de conhecer os ensinamentos  de  Foucalt. De alguma forma, já me sinto muito influenciado por essa   espiritualidade, desde minha infância, através de meus pais, e agora,   por todo esse processo da minha decisão, quando estive rodeado por   vocês. Muito obrigado.
Quero  agradecer, de forma muito especial aos meus queridos amigos e  amigas  companheiros de Pastoral Carcerária. Obrigado pela oportunidade  que me  deram, por confiarem e apostarem em mim. Pela amizade e paciência  que  tiveram comigo. E, sobretudo, pelo exemplo de fé e compromisso com a   causa carcerária e humana. Vocês são verdadeiros guerreiros, pessoas   iluminadas. Faltam palavras pra descrever tudo o que vivi nestes 3 anos   de Pastoral. Quero, do fundo do coração, agradecer a oportunidade de  ter  compartilhado com vocês momentos dos quais nunca esquecerei. A  presença  missionária dentro da Pastoral influenciou a minha escolha.  Carrego  vocês, os presos e as presas, comigo. Que tenhamos dias  melhores, em que  nossa sociedade respeite os direitos dos cidadãos  presos. Muito  obrigado!
Aos meus queridos pais, também faltam palavras. Obrigado pelo exemplo, por nos ensinar a olhar pelo outro, a ter consciência do mundo em que vivemos, a lutar por nossos sonhos. Muito obrigado por serem parceiros comigo e com meus irmãos em nossas investidas, em nossos projetos.
Amo muito você, pai e  você, mãe.
Aos meus  queridos irmãos, todo meu amor e amizade. Vocês são pessoas  especiais  pra mim, trazem mais energia pra minha vida, são minha  sustentação.
Espero estar tão perto de  todos vocês mesmo estando longe. Carrego  vocês nesta luta. Desde já  peço perdão pelas vezes que precisarem de mim  e que estarei ausente.  Obrigado pelo apoio.
Essa minha decisão de viver essa experiência na Amazônia é fruto do convívio com a realidade dos cárceres e a realidade social em sua forma mais cruel, o lado B de nosso País: o País dos esquecidos, dos humilhados. Pude estar em contato com a miséria da miséria, a injustiça, a segregação social e racial, a dor, o esquecimento. Ter visto de perto situações desconhecidas pela maioria das pessoas, ter conhecido um País que ainda maltrata seus cidadãos, tudo isso me despertou pra necessidade de luta, de trabalho para a profunda transformação dessa realidade.
De forma geral, vejo os poderes de Estado ainda muito elististas. Não conhecem de verdade a realidade de seu povo, a pobreza, a falta de dignidade e cidadania que sofrem milhões de cidadãos, não conhecem os cárceres. Mantêm-se distantes daquilo que deveria ser a essência de seu trabalho: o bem comum do povo, sobretudo daquele que mais necessita das instituições para a garantia de seus direitos. Privilegiam o status, o poder, as facilidades materiais em detrimento dos direitos fundamentais das pessoas.
As leis, a Constituição Federal infelizmente não são as mesmas para todos. A justiça é justa para poucos. Os direitos de alguns são mais importantes que de outros. Lutar pela terra é crime. Mas não é crime a situação daquela pessoa que vive em condicoes sub-humanas nas favelas, sem dignidade nenhuma, sem comida. Furtar é crime. Mas não é crime quando o Estado amontoa milhares de presos e presas numa lata, os tortura impunemente, e viola todos seus direitos previstos nas leis. Temos dois Países: o País dos privilegiados, dos que têm acesso à riqueza, à cultura, ao lazer, aos bens materiais, às melhores oportunidades e o País dos esquecidos, que não têm direitos, não têm oportunidades, e ainda são criminalizados.
Devemos mudar, acredito que estamos avançando, mas é preciso muito mais, não podemos permitir retrocessos nas conquistas dos direitos.
Precisamos  acabar com a segregação racial. Vejamos os direitos dos  índios, como  têm dificuldade para ser implementados. Vejamos a diferença  entre os  salários de negros e brancos. Vejamos os preconceitos que os   nordestinos ainda sofrem no sul. A discriminação que sofrem as mulheres.   Isso tudo ainda existe, é verdade, tristemente sentido no cotidiano.
Somos um País extremamente desigual na distribuição de renda. Somos top 10 no ranking de desigualdade. Num país com 200 milhões de habitantes, os 10% mais ricos detêm 50% da riqueza. Os 10% mais pobres, apenas 1% dessa riqueza. Os moradores de favelas pagam proporcionalmente mais impostos que os ricos.
4 milhões  de famílias no Brasil precisam bos benefícios de uma  reforma agrária.  Sem contar outros milhões que vivem em condicoes  sub-humanas e que  precisam de mudanças.
Nosso mundo tem 1 bilhão de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza, com menos de 2 dólares por dia. No Brasil, são 7,5 milhões de pessoas que vivem na linha da pobreza.
Para mudar essa realidade, precisamos democratizar cada dia  mais o  poder econômico e o poder político. Não permitir que o capital  econômico  mande nas políticas dos países, em detrimento das conquistas e  avanços  sociais.
Não  dá para ficarmos tranquilos diante de tanta injustiça. Porque   preferimos a anestesia à luta? Porque não deixemos de lado um pouco   nosso conforto para pensarmos e agirmos por uma sociedade melhor?
Viajo para a Amazônia para colaborar, como cidadão e advogado, com as comunidades ribeirinhas, os índios, a questão ambiental. A discussão que está em voga hoje é a ambiental e, realmente, ela se faz necessária e urgente.
A natureza  cada vez mostra com mais forças seu poder e sua revolta  contra o que  fazemos com ela. Utilizamo-la com interesse econômico e sem  preocupação  com os demais seres que nela vivem. Não nos preocupamos com  o amanhã. E  ela não está feliz com isso. Lembremos dos tsunamis, dos  furacões, dos  terremotos, dos deslizamentos.
Olhemos  para nossa cidade de São Paulo, nesse mês de janeiro, o tanto  que  choveu. Os estragos das chuvas nos lugares mais precários.  Infelizmente  os efeitos climáticos atingem de forma pior os mais pobres,  os que  moram em áreas de risco, nas beiras dos rios.
Insistimos em desmatar  nossas florestas. Somos o 5º pais no mundo que  emite mais gases  poluentes e 75% desses gases vêm do desmatamento.  Matamos nossa  floresta para alimentar o mercado externo, americano e  europeu. Faz  sentido isso?
Do que adianta exercitarmos uma consciência ecológica se não questionamos nosso próprio anseio consumista que desgasta a capacidade da natureza e acelera a degradação do meio ambiente? Devemos exigir de nos sacrifícios pelo bem da sobrevivência da natureza e nossa também.
Apenas para exemplificar,  com situações cotidianas: será que  precisamos ter 50 pares de sapatos  em nossos armários? Dezenas de peças  de roupas que depois ficam  armazenadas? Será que todos precisamos de  carro em detrimento do  transporte público? Precisamos tomar duas vezes  ao dia banhos de 30  minutos? Devemos pensar que nosso padrão de consumo  gera desigualdades e  agride a natureza, e é preciso abdicar desse  modelo.
Sinto nessa minha escolha um pouco de negação, ainda que temporária, do modelo civilizatório ocidental consumista e destrutivo em que vivemos – e, pior, que achamos bom. Desejo buscar na natureza, com os índios, valores humanos que se sobreponham às ilusões da civilização.
Penso que, diante de toda a  realidade miserável que pude ver, não  posso ficar inerte, tocando  minha vida como se a vida do outro nada  tivesse a ver com a minha. Me  sinto na obrigação de colaborar com nosso  povo.
Não é preciso ir até a Amazônia para mudar essa realidade social brasileira. A cidade de SP está cheia de problemas a serem resolvidos, e todos vocês podem colaborar para mudar essa situação. Visitem a favela do moinho, o jardim pantanal, uma unidade prisional. Certamente lá existem muitos problemas e as pessoas precisam de ajuda!
Mas, nem só de lutas vive o homem. Quero viver, escrever uma gostosa poesia de minha vida. Poder respirar um ar puro, contemplar a mata e os animais, estar em contato com culturas diferentes, jogar mais futebol, estar no paraíso natural. Como diz a poesia do sambista Candeia, cantada na voz de Cartola: “deixe-me ir, preciso andar, vou por ai a procurar, sorrir pra nao chorar. Quero assistir ao sol nascer, ver as águas do rio correr, ouvir os pássaros cantar, eu quero nascer, quero viver”.
Para  terminar, dois lindos poemas do nosso querido dom Pedro  Casaldaliga,  grande figura que me inspirou profundamente e a quem tive a  enorme  felicidade e privilégio de conhecer em São Felix do Araguaia:
Deixo aqui um convite para  que todos venham visitar a Amazônia. Para  quem quiser conhecer o  paraíso. Não se arrependerão. As portas lá sempre  estarão abertas a  vocês. Espero vocês numa visita.
Muito  obrigado por virem, quero dar um abraço em cada um de vocês!
Fonte: Blog do Eduardo  Reina 
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