Cristianismo e imaginação
por Gladir Cabral
“Ver o mundo num grão de areia, e ver o céu numa flor selvagem, segurar o infinito na palma de suas mãos, e a eternidade em uma hora” (William Blake)
Nos últimos anos, a imaginação tem-se tornado foco de meus estudos acadêmicos. Fiz pesquisas, li muitos artigos científicos e livros, escrevi textos e participei de eventos em que centenas de interessados se reuniam para debater e compartilhar seus achados sobre essa faculdade tão preciosa na vida humana: a imaginação.
Como bom protestante [rs], acerquei-me do tema com muita resistência e desconfiança no início, pois a imaginação parecia sempre estar associada a heresia, idolatria ou até mesmo alienação política e social. Naquele instante nem me ocorria que, na verdade, a imaginação estava comigo o tempo todo, desde a infância, nas primeiras leituras das histórias bíblicas, nos romances que li, nas canções que aprendia a cantar e depois a fazer.
Talvez a apreensão inicial se devesse a certas interpretações de passagens bíblicas como as de Gênesis 6.5, Deuteronômio 29.19 e Salmo 10.2, que parecem sugerir que os pensamentos do ser humano tendem sempre para o mal e para a idolatria. Entretanto, como alerta Steve Hayhow[1], o fato de a mente humana ter sido afetada pela rebeldia contra Deus não quer dizer que ela não tenha sido também redimida em Cristo. O apóstolo Paulo mesmo alerta em Romanos 12 para a necessidade, e também para a possibilidade, de termos uma mente renovada.
Na verdade, as Escrituras Sagradas estão cheias de passagens que atestam o uso da imaginação para servir aos propósitos de Deus, seja por meio da poesia, da narrativa de histórias, do uso de metáforas, de linguagem figurada, da música e de todas as demais linguagens artísticas. Adoramos a um Deus criativo e cheio de imaginação. O próprio Jesus usou muito a imaginação para ensinar seus discípulos e as multidões: “Olhai os lírios do campo...” (Mateus 6.28); “Eis que o semeador saiu a semear...” (Lucas 8.5). E ele contou histórias, parábolas, ensinou a contemplar, a imaginar...
Muitos teólogos reformados reconheceram a importância da imaginação, como o escocês William Symington, do século XIX, para quem a imaginação era "uma das mais nobres faculdades com a qual o homem foi dotado, e seu uso saudável e apropriado não é apenas necessário à existência da simpatia e outros afetos sociais, mas também intimamente relacionado aos exercícios mais elevados da alma, pelas quais o homem pode compreender as coisas invisíveis e eternas”[2].
Além dos teólogos, grandes escritores cristãos como George MacDonald, G.K. Chesterton, J.R.R. Tolkien e C.S. Lewis usaram com habilidade e profundidade a capacidade humana para imaginar mundos possíveis e tocar nas mentes e corações de seus leitores. Ler esses autores é viajar no tempo e no espaço, no exterior e no interior da alma humana e exercitar as faculdades da mente. Eles não apenas criaram histórias originais e imaginativas, como também refletiram sobre o processo de criação e o uso da imaginação.
Recentemente, o pastor e pregador John Piper comentou que “a imaginação é como um músculo. Ela fica mais forte na medida em que a flexionamos”[3]. Segundo ele, a imaginação não é apenas uma capacidade, um recurso que temos, mas um dever. A imaginação não é apenas a mente em ação, analisando, observando, organizando a realidade. Ela nos permite olhar para os aspectos invisíveis da realidade, explicá-los e expressá-los de forma hábil, como muitas vezes fazem os cientistas e artistas. Para Piper, a imaginação é um dever do cristão, pois sem ela não é possível colocar-se no lugar do outro e amá-lo. Isto é, sem imaginação, não existe empatia, simpatia, amor. E é um dever porque nos permite falar da verdade de modo criativo e interessante.
O escritor norte-americano e pastor Frederick Buechner também compreende a imaginação como um músculo a ser exercitado, o que por si só já é uma metáfora. Para ele, quando usamos a imaginação, nos aproximamos de Deus em sua habilidade de criar a partir do nada. Ele também entende a imaginação como uma capacidade natural de todo ser humano, e seu uso é tão simples quanto assobiar. Exercitamos a imaginação ao criar literatura ou ao usufruir literatura. É preciso imaginação para escrever um romance tanto quanto para ler um. Além do mais, o que foi confirmado por Piper, a imaginação nos permite olhar o mundo a partir do outro e exercitar a sensibilidade humana[4].
O educador canadense Kieran Egan[5] tem dedicado mais de 20 anos de sua vida ao estudo da imaginação e sua aplicação na educação. Para ele, a imaginação é uma grande ferramenta de ensino, que pode permitir ao educador explorar todos os potenciais criativos da mente humana. O bom educador sabe usar e provocar a imaginação de seus educandos. Jesus, como o Mestre, fazia isso com leveza e encantamento.
A imaginação tem também uma forte dimensão política, na medida em que permite a solidariedade humana e a reinvenção da realidade. Ao imaginar o mundo como ele pode vir a ser, e não apenas como ele já é, fazemos um exercício político de recriação e transformação da realidade. É assim que a humanidade tem evoluído. Tudo o que há de bom em nossa cultura e sociedade foi primeiramente imaginado, sonhado; depois planejado e construído. Daí que a imaginação ativa nossa capacidade de pensar criticamente a realidade e transcendê-la.
Outro aspecto interessante é que a imaginação nos permite conhecer a realidade. Ela não nos aliena, não nos joga para fora do mundo, mas nos faz ver com mais clareza nosso tempo, nossa sociedade, nossa história, nossa vida. A imaginação nos faz olhar o mundo com admiração e senso de mistério: aquele “Oh!” que se estampa nos olhos das crianças, e nos nossos olhos, quando estamos diante do oceano. Sem ela, não há ciência nem invenção. Einstein, por exemplo, nos mostra como ciência, criatividade e imaginação podem caminhar lado a lado.
Ainda mais, a imaginação nos permite explorar as dimensões emocionais da experiência humana. Quando lemos um livro, ouvimos uma história, uma canção, assistimos a um filme, contemplamos um quadro ou uma peça teatral, somos tocados profundamente em nossas emoções. A imaginação sensibiliza, ela é a inteligência interligada à emoção. Por isso um professor, um músico, um pregador que saber usar a imaginação toca mais fundo na alma de seus ouvintes.
Finalmente, a imaginação nos permite a vivência plena como Igreja, pois por meio dela podemos edificar os irmãos “com salmos, hinos e cânticos espirituais” (Colossenses 3.16), mas também com causos, histórias, testemunhos, narrativas, danças, pinturas, palmas e silêncio. Ela também nos permite enriquecer a adoração, pois toca com o coração a realidade, a verdade e a vida.
Referências:
[1] Steve Hayhow. Christian imagination. (2008). Acessado em: 20 julho 2010.
[2] Apud Steve Hayhow.
[3] John Piper. Meditation on Imagination. (2003). Acessado em: 20 julho 2010.
[4] Frederick Buechner. Beyond Words: Daily Readings in the ABC's of Faith. New York: Harper Collins, 2004.
[5] Kieran Egan tem alguns livros traduzidos para o português: A Mente Educada, publicado pela editora Bertrand Brasil, e Mente de Criança, pela editora Piaget.
Casado com Ruth (1985) e pai de Johana e Julia, Gladir Cabral é formado em Teologia e Letras, com doutorado em Letras pela UFSC (2000). Atualmente, exerce o pastorado na Igreja Presbiteriana do Brasil e atua como professor universitário em Criciúma (SC). Músico e compositor, gravou recentemente o DVD Casa Grande.
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