O escritor George Orwell é muito conhecido por seu livro 1984.
Nele, apresenta a famosa figura do Big Brother: a personificação de um
Estado totalitário que, graças a um recurso tecnológico, consegue
investigar a vida privada de cada cidadão. Mas o melhor e mais
fascinante livro de Orwell não é esse: chama-se A revolução dos bichos.
É um texto extremamente interessante e que nos nossos dias tornou-se
altamente aplicável a uma parcela da Igreja de Nosso Senhor Jesus
Cristo, como abordarei mais à frente.
Numa fazenda dominada por homens, os animais se revoltam, expulsam os
humanos e tomam conta dos negócios, numa tentativa de romper com o
modelo institucional que havia até então. Cada animal passa a, em
teoria, ter um papel igualitário ao dos outros, embora com funções
diferentes. Numa parede escrevem o estatuto da nova comunidade:
“Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.
O que ande sobre quatro pernas, ou tenha asas, é amigo.
Nenhum animal usará roupa.
Nenhum animal dormirá em cama.
Nenhum animal beberá álcool.
Nenhum animal matará outro animal.
Todos os animais são iguais.”
Me perdoem, mas vou contar o final da história. O tempo vai passando.
Aos poucos, o inevitável acontece: um segmento da comunidade de
animais, no caso, os porcos, começa a dominar a fazenda, impondo fardos
pesados aos companheiros (patos, cavalos e outros). Dia após dia, eles
se aproximam mais do que os humanos opressores eram tempos antes. Os
porcos passam a se portar exatamente como os antigos proprietários da
instituição: vestem-se com roupas de gente, fumam charutos, bebem álcool
e ao fim acabam andando sobre duas pernas (patas). O desfecho do livro
reserva a grande lição: na parede onde se leem os mandamentos dessa
instituição que era para ser anti-institucionalizada, alguém faz um
remendo na última norma: “Todos os animais são iguais – mas alguns são
mais iguais do que os outros”.

A
fábula, escrita com brilhantismo por Orwell, simplesmente reflete um
fenômeno natural ao gênero humano: por mais que as pessoas busquem
romper com as hierarquias e viver fora de instituições, as hierarquias
sempre encontrarão um caminho para se reestabelecer e qualquer
agrupamento social virará uma instituição. Isso é um fato da vida e um
fenômeno tão natural como gelo derreter ao sol. Por isso, quando vejo a
enxurrada de irmãos em Cristo que se lançam numa cruzada contra a Igreja
institucional, inevitavelmente me lembro de
A revolução dos bichos. Pois o que acontece nessas comunidades é exatamente o que ocorre na história do livro.
Na igreja
Para que esta reflexão faça sentido, temos que abrir
um parêntese aqui e esclarecer o básico: o que é uma instituição? Vamos
ao dicionário: “instituição” é “organização, estrutura”. Opa, isso já
nos dá uma pista. Por essa definição, a Igreja institucional seria um
agrupamento de cristãos em que a manifestação de seu relacionamento e
culto a Deus se dá numa estrutura organizada. Eis o que caracterizaria
uma igreja institucional: uma comunidade de pessoas que compartilham da
mesma fé e que montam uma estrutura (com hierarquias, estatutos,
liturgias etc) para que possam manifestar sua fé em Jesus Cristo de modo
organizado.
A caminhada do indivíduo para fora de um modelo tradicional de igreja
geralmente começa quando cristãos sinceros se chateiam com algo que
está presente na congregação. São razões as mais variadas (umas
legítimas, outras não), como discordâncias do pastor, ofensas ou frieza
da parte de outros membros, cultos que não agradam ou coisa que o valha.
Então esses irmãos abandonam sua antiga igreja e decidem que vão viver a
fé cristã de modo supostamente desinstitucionalizado, seja em casa ou,
como é mais comum, em comunidades alternativas – uma igreja doméstica,
um pequeno grupo ou uma comunidade mais “livre”.
Em princípio é só alegria: uau, um modo de viver a fé sem a opressão
ou os grilhões da instituição! Acreditam até alguns que estão vivendo de
modo mais parecido com a Igreja primitiva. Mas aquele que tem uma visão
mais sagaz já percebe que os porcos não tardarão a andar sobre duas
patas.
Inevitavelmente, toda comunidade supostamente não-institucional acaba
tendo líderes, o que é um traço de uma igreja institucional. Também
acaba estabelecendo datas e horários de reuniões, o que é um traço de
uma igreja institucional. Há ainda a especificação de formas de ação, o
que é um traço de uma igreja institucional. Sem falar que as reuniões
seguem sequências de eventos (lamento informar, mas isso é uma
liturgia), o que é um traço de uma igreja institucional. E não podemos
esquecer que muitas dessas igrejas que não se dizem igrejas têm CNPJ e,
se você quiser abrir uma filial dessa “comunidade”, terá de pedir
autorização formal e legal ao seu dono (não, Jesus não detém os direitos
legais do CNPJ). Ou seja: qualquer tentativa de se fazer uma igreja
não-institucional mais cedo ou mais tarde descambará para a
institucionalização desse organismo. Fato: a desinstitucionalização da
Igreja é uma utopia.
Esses irmãos – sinceros em suas intenções, faço questão de ressaltar –
acabam, então, vivendo sua fé numa nova forma de instituição. Um pouco
diferente da antiga igreja de onde vieram. Mas igualmente litúrgica,
hierárquica, organizada e, desculpem ofender, institucionalizada. O fato
de não pertencer formalmente a uma denominação, não ter um templo
próprio ou ter uma liturgia em suas práticas diferentes do modelo mais
comum não quer dizer em absoluto que aquilo não é uma instituição. Um
bife pode virar estrogonofe no dia seguinte, mas não deixará de ser
carne. É o que acontece.
Começa então um trabalho de autoconvencimento por meio da semântica.
Para se sentirem melhor, dizem que não congregam mais em “igrejas”, mas
sim em “comunidades”. Que não vão mais a “cultos”, mas a “encontros” ou
“reuniões”. Que não têm mais “pastores” ou “líderes”, mas “irmãos mais
experientes na fé”… Mas na essência é absolutamente igual! Assim, esses
irmãos, felizes, passam a se convencer de que agora vivem numa
comunidade mais apostólica, mais próxima da Igreja primitiva,
esquecendo-se de que a Igreja primitiva era tão problemática como a de
hoje. Basta ler as epístolas do NT. Basta ler as sete cartas às igrejas
de Apocalipse. Quem ignora todos os descalabros e problemas que havia na
Igreja primitiva deveria ler com mais atenção o NT e estudar as razões
que levaram Paulo, Pedro, João e os outros autores canônicos a escrever
suas cartas. E o que havia lá há cá: pe-ca-do!

Lembro-me
de um movimento que tinha uma proposta muito similar à dos cristãos que
querem acabar com a Igreja institucional: os hippies. Eles queriam
soltar-se das amarras da sociedade institucionalizada, viver em
liberdade, paz e amor e tal. Mas o movimento hippie acabou, os
ex-hippies amadureceram, viraram homens de negócios e pais de famílias
bem caretas e deixaram como legado uma sociedade mais depravada,
libertina e pecaminosa. Ou seja: o legado do movimento hippie para os
nossos dias (nem mesmo acabar com a guerra do Vietnã eles conseguiram) é
ruim, uma má influência. E, lamentavelmente, a igreja anti-igreja corre
um enorme risco de ir pelo mesmo caminho. E não percebe isso.
Muitos líderes mais visíveis das igrejas anti-igreja têm websites,
possuem “comunidades” com CNPJ, vendem seus livros, pedem doações, têm
horário para suas pregações, estabelecem liturgias sim (repare que suas
transmissões via web ou coisa parecida sempre seguem o mesmo modelo) e
fazem tudo de forma institucionalizada. Mas seu discurso é anti-Igreja
institucional. Com isso, o grande problema é que não contribuem com
absolutamente nada para a causa de Cristo – apenas satisfazem seus
seguidores ao dizer o que eles gostariam de ouvir. São como os “porcos”
(no sentido orwelliano, ressalto. Não tenho nenhuma intenção aqui de
ofender ninguém, por favor, que isso fique claro) que já andam sobre
duas patas, fumam charutos e vestem roupa de gente.
Conclusão
A cruzada anti-igreja institucionalizada é o caminho? Não, não é.
Simplesmente porque todas essas comunidades são também instituições,
apenas com formas de agir novas. Com dialetos e sotaques diferentes, mas
apenas mais do mesmo. E em todas elas habita o verdadeiro problema, o grande vilão da história: pecado.
Esse sim é o bicho-papão. Onde há pecado, os porcos vão sempre andar
sobre duas patas e pessoas continuarão a ser magoadas, feridas e ficar
chateadas com outros irmãos. Isso é inevitável. E acreditar que mudar os
nomes das coisas e começar a se reunir em quintais e salas de estar em
vez de santuários “institucionais” vai mudar isso é de uma ingenuidade
atroz.
É óbvio que uma igreja institucional que se preocupa mais com a
estrutura do que com as pessoas é uma instituição falida. Uma igreja
institucional que funciona como uma empresa para sustentar a família do
pastor ou que em vez de conduzir as ovelhas ao aprisco as conduz ao
abatedouro tem sérios problemas de saúde. Uma igreja institucional que
perdeu a espiritualidade, a simplicidade e o senso de discipulado é uma
casca oca. Mas, por favor, entenda, isso não tem nada a ver com o fato de ela ser institucional.
Tem a ver com o distanciamento de seus integrantes de Deus, com a perda
de intimidade com o Senhor, com o esfriamento da fé. E isso pode
acontecer em qualquer modelo de igreja. Seja ela “organizada” ou
“desorganizada”.

Cristãos
que perdem seu tempo precioso combatendo a Igreja institucional em vez
de proclamar Cristo e pregar contra o pecado estão sendo tão úteis para o
Reino de Deus como os hippies que fazem miçangas para vender na beira
da praia são para a revolução social. E enquanto esse tempo é perdido,
almas estão indo para o inferno, porque os que se chamam pelo nome do
Senhor estão se perdendo em vãs discussões.
George Orwell estava certo. Expulsamos os homens da fazenda. Mas em
seu lugar pomos apenas modelos novos da mesma coisa – só que com uma
maquiagem diferente.
Paz a todos vocês que estão em Cristo (seja na Igreja institucional,
na igreja dos anti-igreja ou em qualquer outro modelo em que o Corpo de
Cristo se reúna para adorá-lO em espírito e em verdade).
Pitaco da Meire: