O Problema do Perdão – John Stott
O "olhar abaixo da superfície" 
A nossa insistência de que segundo o  evangelho a cruz de Cristo é o único fundamento sobre o qual Deus  perdoa pecados confunde a muita gente. "Por que o nosso perdão depende  da morte de Cristo?" perguntam. "Por que Deus não nos perdoa  simplesmente, sem a necessidade da cruz?" Como disse certo cínico  francês: "le bon Dieu me pardonnera; c'est son métier". "Afinal de contas", pode continuar o discordante, "se pecamos uns contra os outros, requer-se que perdoemo-nos  uns aos outros. Somos até mesmo advertidos das terríveis conseqüências  da falta de perdão. Por que Deus não pratica o que prega e é igualmente  generoso? Não é preciso que ninguém morra para que nos perdoemos uns aos  outros. Então por que Deus cria tanta confusão acerca de perdoar-nos e  até declara que sem o sacrifício do seu Filho pelo pecado o perdão é  impossível? Parece uma superstição primitiva a qual as pessoas modernas  há muito deviam ter atirado fora."
É essencial fazer essas perguntas e  responder a elas. Podemos dar-lhes, de imediato, duas respostas, embora  necessitemos do restante do capítulo a fim de elaborá-las. A primeira  resposta vem do arcebispo Anselmo em seu grande livro Cur  Deus Homo?, escrito no final do século onze. Escreveu ele que se  alguém imagina que Deus pode simplesmente nos perdoar como nós perdoamos  uns aos outros, essa pessoa "ainda não pensou na seriedade do pecado",  ou literalmente "que peso tão grande o pecado é" (I.XXI).  Poderíamos expressar a segunda resposta de modo similar: "Você  ainda não considerou a majestade de Deus". Quando a percepção que  temos de Deus e do homem, da santidade e do pecado, é tortuosa, então  nossa compreensão da expiação provavelmente também será tortuosa.
O fato é que a analogia entre o  nosso perdão e o de Deus está muito longe de ser exata. É verdade, Jesus  nos ensinou a orar, dizendo: "Perdoa-nos as nossas dívidas  assim como nós temos perdoado aos nossos devedores". Mas ele estava  ensinando a impossibilidade de perdão da parte da pessoa que não perdoa,  e, assim, a obrigação que o perdoado tem de perdoar, como deixa claro a  parábola do servo incompassivo; ele não estava fazendo um paralelo  entre Deus e nós com relação à base do perdão. Argumentarmos que  "perdoamo-nos uns aos outros incondicionalmente, que Deus faça o mesmo  por nós", trai não sofisticação mas superficialidade, visto que deixa de  lado o fato elementar de que não somos Deus. Somos indivíduos  particu¬lares, e os pequenos delitos das outras pessoas são danos  pessoais. Deus não é um indivíduo particular, contudo, e o pecado  tampouco é mero dano pessoal. Pelo contrário, o próprio Deus é o criador  das leis que quebramos e o pecado é rebeldia contra ele.
A pergunta crucial que devemos  fazer, portanto, é diferente. Não é por que "Deus acha  difícil perdoar, mas como é que ele acha possível, de algum modo,  fazê-lo". Como disse Emil Brunner: "O perdão é o oposto  de tudo aquilo que podemos ter como certo. Nada é menos óbvio do que o  perdão". Ou, nas palavras de Carnegie Simpson: "O  perdão, para o homem, é o mais claro dos deveres; para Deus é o mais  profundo dos problemas".
O problema do perdão é constituído  pela colisão inevitável entre a perfeição divina e a rebeldia humana,  entre Deus como ele é e nós como somos. O obstáculo ao perdão não é  somente o nosso pecado nem somente a nossa culpa, mas também a reação  divina em amor e ira para com os pecadores culpados. Pois embora,  deveras, "Deus seja amor", contudo, temos de lembrar-nos de que o seu  amor é "um amor santo", amor que anseia pelos pecadores enquanto ao  mesmo tempo se recusa a tolerar o pecado. Como, pois, poderia Deus  expressar o seu santo amor? — seu amor em perdoar pecadores sem  comprometer a sua santidade, e a sua santidade ao julgar os pecadores  sem frustrar o seu amor? Confrontado pela maldade humana, como poderia  Deus ser verdadeiro a si mesmo, como amor santo? Nas palavras de Isaías,  como poderia ele ser simultaneamente "Deus justo e  Salvador" (45:21)? Porque, apesar da verdade de que Deus tenha  demonstrado a sua justiça tomando a iniciativa de salvar o seu povo, as  palavras "justiça" e "salvação" não podem ser tomadas como sinônimos.  Pelo contrário, a iniciativa divina salvadora era compatível com a sua  justiça e a expressava. Na cruz, em santo amor, o próprio Deus, através  de Cristo, pagou a penalidade completa de nossa desobediência. Ele levou  o juízo que merecemos a fim de trazer-nos o perdão que não merecemos.  Na cruz, a misericórdia e a justiça divina foram igualmente expressas e  eternamente reconciliadas. O santo amor de Deus foi "satisfeito".
Todavia, estou correndo rápido  demais. O motivo pelo qual muitos dão respostas erradas às perguntas  acerca da cruz, e até mesmo fazem perguntas erradas, é que não pensaram  cuidadosamente na seriedade do pecado nem na majestade de Deus. Para que  possamos fazê-lo agora, revisaremos quatro conceitos bíblicos básicos, a  saber, a gravidade do pecado, a responsabilidade moral do homem, a  culpa verdadeira e a falsa, e a ira de Deus. Veremos a nós mesmos,  assim, sucessivamente como pecadores, responsáveis, culpados e perdidos.  Não será um exercício agradável, e, no seu decurso, nossa integridade  será testada.
Via: O Cristão Reformado 

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