O pecado original de nascer mulher
A mais influente escritora chinesa conta novas histórias de abandono e solidão numa China ainda obcecada pela política do filho único
Se dos livros frágeis não se conta o final, dos marcantes, muito menos. Por isso não daremos a história de Little Snow, a filha que a jornalista Xinran Xue foi impedida de adotar quando ainda morava na China. Little Snow fecha a mais recente obra de Xinran Xue, Message from an Unkown Chinese Mother, que será publicada pela Companhia das Letras neste semestre como As Filhas sem Nome. Também por respeito à escritora mais crítica da política chinesa do filho único, Little Snow permanece em segredo aqui. Durante esta entrevista, dada por celular de Santa Fé (EUA), Xinran se emocionou quando mencionamos a criança. Tanto se emocionou que se calou.
Ela não é disso. Aos 52 anos, Xinran está em turnê para divulgar dez histórias de mulheres chinesas que penaram sob a lei que valoriza quem tem um filho homem e inferniza quem insiste em criar uma menina. Devido à restrição, milhões de garotas ainda são abortadas, outras são afogadas em penicos, outras nem chegam a se desenvolver no útero depois de um ultrassom certeiro e cerca de 120 mil são adotadas anualmente mundo afora, enquanto mães biológicas tentam o suicídio para sufocar o remorso. Às que resistem, resta pedir a Xinran que oriente as mães de nariz grande (as mulheres ocidentais) para que carreguem seus bebês apoiados no braço esquerdo, "assim a menina ficará mais perto do coração". Xinran, ela própria, mal conviveu com os pais, que a deixaram aos cuidados dos avós. Mudou-se para Londres, onde mora com o filho, de 21 anos, e o marido inglês, também seu editor. O acordo entre os dois é mudar a História. De que forma? Dando voz às vítimas e aos perdedores. E também às mulheres.
Em seu último livro, ‘Message from an Unkown Chinese Mother’, a senhora conta dez histórias de mulheres, entre elas chinesas que abandonaram suas filhas por causa da política do filho único, outras que foram abandonadas também devido a essa lei. Qual dessas histórias mais a tocou?
Em 20 anos de pesquisa, conheci muitas mulheres, mas escolhi entrevistar as que vivem no campo para entender o que aconteceu na China desde a predominância da população no meio rural até sua migração para as cidades. É muito difícil dizer qual delas me tocou mais porque todas foram uma grande lição pra mim. Cresci na cidade grande, era muito ingênua, mesmo aos 30 anos. Achava que todos na China viviam como eu vivia. Depois que conheci essas histórias, elas ainda me causam pesadelos. Na noite passada, acordei às 2 da manhã com a imagem da garotinha que vi sendo abandonada pela família na estação de trem. Ela devia ter 1 ano e meio, era quase meia-noite, não podia acreditar naquilo. Acordei pensando: "Será que sobreviveu?"
A senhora também teve uma infância longe dos seus pais. As mulheres presentes no seu livro são uma forma de tentar entender o comportamento da sua mãe em relação ao seu abandono?
Minha mãe não me abandonou. Ela era muito culta, falava quatro línguas, mas foi doutrinada para colocar o partido em primeiro lugar, o país em segundo e, então, as pessoas. Qualquer um que valorizasse primeiramente os próprios filhos era considerado capitalista. Minha mãe acreditava nisso. Três meses atrás tentei falar com ela. Eu queria saber se realmente se importava com o que tinha acontecido comigo. Ela ficou brava com a minha primeira pergunta, então achei melhor não insistir. Mas a verdade é que sinto falta dessa resposta, todas sentem. Quando viajo, é comum encontrar chinesas adotadas que querem ter notícias de suas mães. Não importa a idade ou a língua que falem, sempre perguntam a mesma coisa: "Por que minha mãe não me quis?"
Quanto um casal estrangeiro costuma pagar por uma menina chinesa?
A menina custa de US$ 200 a US$ 2 mil. O preço dos meninos fica entre US$ 20 mil e US$ 50 mil. A taxa internacional e de registro cobradas desses pais estrangeiros varia entre US$ 3 mil e US$ 5 mil.
Há comércio de meninos também?
Todo ano, cerca de 20 mil meninos desaparecem para compor a árvore genealógica de famílias que não conseguem conceber um varão.
O tráfico de noivas e a violência sexual aumentaram na China?
Depende de onde você está, se no campo ou nas cidades. Nas cidades existe hoje um controle maior das autoridades, a população tem mais conhecimento e a Justiça é mais eficaz. Mas, se você for para o campo, esse tipo de violência ainda é costume da população e a morte de meninas é vista como parte da administração da casa. Quando me perguntaram: "Como você ‘lida’ com as meninas?", eu não entendi. Não sabia o que responder. Disseram, com surpresa: "Você é uma mulher e não sabe ‘lidar’ com as meninas?"
A senhora quer dizer matar as meninas?
Sim. Existe um livro de imagens antigas da China, de Ren Ming , O Sonho das Mulheres. Ele ensina os homens a abusar das mulheres e domá-las durante o sexo, assim como explica como elas podem engravidar de meninos. Também ensina a lavar bebês. Os meninos são lavados na primeira água. Na água já utilizada, as meninas são mergulhadas e mortas. Ainda hoje, em certas regiões da China, a morte de meninas é parte da cultura de diferentes formas.
O índice de suicídios de mulheres na China é um dos mais altos do mundo, especialmente no campo. Por que isso acontece?
De acordo com um relatório das Nações Unidas de 2002, cinco países tinham índices muito altos de suicídio, entre eles a China, onde é mais frequente entre as mulheres. Pelas minhas pesquisas isso não surpreende, porque nos anos 80 a maioria das chinesas não sabia a diferença entre a vida na cidade e a vida no campo. Quando migravam para o perímetro urbano nos anos 90, acordavam e passavam a sentir o choque cultural. Em uma das histórias do meu livro, uma mulher trabalhava em um pequeno restaurante. Sempre que o restaurante fazia uma festa de aniversário para uma menina, ela tentava se matar. Quando a entrevistei, essa mulher me perguntou: "Por que as meninas da cidade podem ter uma vida bonita, como os meninos? Por que minha filha não teve vida para viver?" Ela a tinha matado e isso se tornou insuportável.
A senhora acha que a situação das mulheres está melhorando, na China e no mundo?
Isso está acontecendo na China. Desde 1949, o Partido Comunista fez uma série de coisas estúpidas, mas entre as boas que realizou para a China está a ajuda às mulheres para se libertarem dos maridos e dos homens em geral. Elas puderam ascender na sociedade. Falo daquelas que vivem nas cidades, não das que moram no campo. O problema é que, como acontece na maioria dos países, sempre acreditamos que a libertação feminina pede uma atitude das mulheres e nunca pensamos que os homens precisam de educação. Eles precisam entender que as mulheres necessitam ser libertadas por eles. Nesse sentido, fizemos bastante na China, mas não existe uma única China. Há mais de 500 Chinas diferentes, da mais moderna à mais rudimentar. É por isso que sempre acreditei que a China deveria ser contada por diferentes vozes, em diferentes cores. Pelo que vi em minha viagem ao Brasil (em 2009, para participar da Festa Literária Internacional de Paraty, Flip), senti que as mulheres talvez tenham uma vida melhor aí. Mas, no interior profundo, talvez haja em relação a elas a mesma falta de conhecimento, a mesma crença no tradicional.
No Brasil, as mulheres estão entre os mais letrados. Ainda assim, ganham 30% menos que os homens fazendo o mesmo serviço e ocupam só 56 dos 594 lugares no Congresso. Como resolver isso?
Acho que o governo deveria importar-se com a qualidade de vida da população, com a qualidade de vida do País. Ele deveria tratar seriamente as mulheres, os modelos de família, e dar a elas não apenas educação, mas suporte familiar.
Ser um país abastado ajuda? Ou seja, é automático que, à medida que um país se torna mais rico, maior a possibilidade de uma relação igual entre homens e mulheres?
Nos países desenvolvidos, onde as mulheres têm mais chance de se educar e dividir conhecimento com outras, elas se tornam mais autoconfiantes. Nos países em desenvolvimento, em que precisam lutar para sobreviver, não sobra tempo nem energia nem meios para aprender mais nada. Estão exaustas para lidar com a vida diária. Em Cingapura, o governo implantou nos anos 60 uma política muito forte para levar adiante o planejamento familiar. Se a cingapuriana quiser ter mais filhos, precisa ter mais condição para tanto. Caso contrário, pode ter no máximo duas crianças. Portanto, depois de algumas gerações, a qualidade de vida em Cingapura melhorou enormemente. Mas isso não é democracia.
A política do filho único continuará indefinidamente?
Não tenho certeza. Alguns meses atrás, as autoridades de Xangai desafiaram o governo central. A cidade mais desenvolvida da China se vê no direito de ter mais filhos. Em janeiro, a maior província chinesa, Hunan, também desafiou Pequim dizendo que a política do filho único prejudicou a noção básica de família: muitos jovens não têm ideia do que é ter um irmão, um tio, uma tia. Mas a política do filho único ainda continua vigente, em parte por causa da corrupção, em parte porque os camponeses sabem burlar essa política. E, em alguma medida, a política do filho único também pode ser boa para o mundo, considerando-se o aquecimento global, o crescimento da população, o esgotamento dos recursos naturais. Na Índia, 30% da população tem menos de 30 anos. Isso significa que, nos últimos 30 anos, a população da Índia dobrou. Se todos os países dobrarem sua população nessa velocidade, muito rapidamente acabaremos com a espécie humana.
A senhora busca ajudar crianças chinesas com problemas por meio de uma fundação, a Mother Bridge of Love Foundation. Quais os desafios que enfrenta?
Começamos com esse trabalho em 2004 porque, desde então, 120 mil garotas chinesas foram adotadas em 27 países. Na questão da adoção internacional - e não importa de qual país se fala -, estamos muito atrasados. Não há muito a fazer depois de a adoção concluída. A família que adota não recebe apoio social. O que fazemos é tentar ajudar esses casais a conhecer as cidades de origem das filhas, fazer com que as crianças criem amizades na China. Também ajudamos crianças deficientes que foram deixadas para trás. Tentamos dar a elas assistência médica, computadores, aulas de inglês. Montamos uma biblioteca com livros ilustrados sobre história, paisagens, vida diária, para garotas que nunca tiveram chance de frequentar escola, já que a população local não as matricula, mesmo em escolas públicas. Querem as meninas para cuidar da casa. Os garotos vão para as cidades, enquanto elas são deixadas para trás para que casem. Suas famílias precisam das garotas trabalhando desde cedo. Se você vai para o campo, vê muitas delas flanando, enquanto os meninos estão na escola.
Como os acadêmicos chineses veem seus livros?
Quando publiquei meu primeiro livro, em 2002, muitos chineses foram contra ele. Não acreditam que a China tenha um lado pobre, nunca viram nada como aquilo que retratei. Mas agora mais e mais chineses acreditam em mim, porque viajam para o campo. Alguns estudaram no Ocidente e lá ouviram coisas que nunca tinham ouvido. Mais de 200 universidades usam meus livros como referência e fonte de pesquisa e mais de 100 países os incluíram no segundo grau para estudos sobre raça.
A senhora acha que parte dessa crítica se deve ao fato de os chineses terem problemas para enfrentar seu passado?
Eu achava que somente a China tinha esses problemas, mas agora vejo que isso acontece com muitos países. Na Alemanha, muitas mulheres silenciaram sobre a 2ª Guerra até dez anos atrás. Sentiam-se como assassinas, perdedoras, sem poder expressar seus sentimentos. As chinesas que aparecem nos meus livros são todas muito simples, nunca tiveram a chance de serem ouvidas, nunca tiveram o direito de ter a roupa ou a comida que preferiam. Não são nada. Muitos chineses me disseram: 'Elas são gente do povo, por que escrever sobre elas?" Só muito recentemente perceberam que a História não deve ser escrita apenas pelos ganhadores. Ela deve dar voz às vítimas e aos perdedores. Deve dar voz às mulheres.
Fonte: Estadão
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