quarta-feira, abril 07, 2010

Carta aberta ao blog "Um que Tenha" (e à mídia brasileira)

Carta aberta ao blog "Um que Tenha" (e à mídia brasileira) 
por Sérgio Pereira e Marivone Lobo


Em janeiro deste ano resolvemos colocar em prática o que alguns músicos e bandas têm feito: disponibilizar gratuitamente o álbum na internet para divulgação. Estamos surpresos com o resultado. Enquanto finalizamos esse texto de introdução, demos uma olhada no contador do 4shared onde está hospedado o CD e temos mais de 1.800 downloads em 60 dias! Apoiados em vários blogs, sites e amigos, tentamos o formato e estamos satisfeitos.
Reparamos que alguns evangélicos têm dificuldade com nosso trabalho por considerá-lo “secular” demais (já devolveram CD dizendo isso...); por outro lado já nos impediram de tocar em programações de rádio FM (não cristã) pelo fato de termos músicas com letra religiosa; e assim vamos apanhando de todo lado.
Ao tentar colocar o CD no blog “Um que Tenha”, onde estão disponibilizados milhares de trabalhos da música brasileira, tomamos um sonoro “talvez” (que depois se tornou silenciosamente “não”)! Por que? Devido à “conotação religiosa” do CD, segundo explicou “Fulano Sicrano” (como se autodenomina), o administrador do blog.
Gostaríamos de saber se também seríamos impedidos em rádios, blogs, TV e no restante da mídia por cantar músicas sobre deuses de outras religiões... Ademais, será que alguém teria a coragem de boicotar alguma musica hoje por ter “conotação sexual”? Ora, a prescrição jurídica do preconceito sexual e étnico está na mesma lei do preconceito religioso. Então é legal o preconceito religioso, mas não o sexual ou até étnico?
Resolvemos escrever uma carta, primeiramente “privada”, mas, como não obtivemos resposta (ela foi enviada há quase dois meses e o Fulano disse que não sabe quando vai responder), disponibilizamos aqui não como forma de pressão para que nosso CD seja incluso na coletânea (não esperamos mais isso), mesmo porque o espaço de um blog é privado, mas como voz de muitos outros que sofrem o mesmo tipo de preconceito contra sua arte, independente da qualidade que possa ter.
Antes de tornar pública a carta, várias pessoas nos incentivaram a fazê-lo, dentre elas, músicos, teólogos, sociólogos e editores de expressão no cenário protestante brasileiro. Portanto, a carta deixou de ser dirigida simplesmente ao Fulano e seu blog e sim à mídia, pois entendemos que a discussão é maior...

Ribeirão Preto, 29 de janeiro de 2010.
Carta ao Fulano Sicrano (blog “Um que Tenha”):
Não sei se você já ouviu nosso trabalho Baixo e Voz. Será uma honra para nós tal escuta, vindo de uma pessoa que tem contribuído tanto para a discografia brasileira na forma digital, resgatando valores esquecidos por uma maioria e mostrando novos talentos abandonados pela grande mídia.
Escrevemos devido a uma frase sua, quando solicitamos a colocação de nosso CD “Viagens de Fé” no blog "Um que Tenha": ‘Se não tiver conotação religiosa, coloco com certeza!’. Confessamos: ficamos “cabrêros”...
Por que entendemos que é importante termos nosso trabalho em um blog como o "Um que Tenha"? Porque não gostaríamos que, como músicos que trabalham desde 1995 produzindo música elogiada por Telo Borges, Ian Guest, André Mehmari, Rodolfo Stroeter, Rique Pantoja, Arthur Maia, Nico Assumpção, Wanda Sá, Edu Martins, Adriano Giffoni, Johnny Alf, Jorge Pescara, Nilton Wood, Marcelo Mariano, Fernando Merlino, Vânia Bastos, Fernando Nunes, Léa Freire entre tantos outros músicos de renome, deixemos de ser lembrados nos meios de divulgação como parte da cultura musical deste país simplesmente por cantarmos letras que condizem com nossa opção religiosa.
Milhares de pessoas compraram nossos trabalhos (temos quatro CDs gravados), nos ouviram e assistiram (ao vivo) e sabemos que hoje fazemos parte, de alguma maneira, da história de vida delas. Sim, fazemos parte da cultura brasileira!
Ora Fulano, você sabe que nosso Brasil é feito de varias etnias e diversas religiões. Dentro do protestantismo que professamos, por exemplo, existem diversos “protestantismos”. Religiões são tão intrínsecas ao próprio homem, que não há como separar nosso “eu religioso” de nosso “eu material”. É uma coisa só, do contrário, soaria paradoxal e falso.
Apesar de uma fé católica tupiniquim arraigada, temos milhões de evangélicos hoje no país, além de diversas outras crenças e cultos com seus milhares de adeptos, como o candomblé, umbanda, budismo, islamismo, judaísmo entre outras, que a todo momento são cantados nas letras de nossos artistas. Alguns exemplos:
·   “Romaria” – Renato Teixeira em uma das músicas mais cantadas à Senhora Aparecida.
·   “Nossa Senhora”, “Jesus Cristo” – na voz de Roberto Carlos.
·   “Afro sambas” – Vínícius de Moraes e Baden Powell são os autores dessas obras de arte carregadas de religião, gravadas por muitos, como por exemplo, Mônica Salmaso.
·   “Afoxé é”, “Filhos de Gandhi”, “Iansã”, “Iemanjá”, “São João, Xangô menino”, “Se eu quiser falar com Deus”, “Opachorô” – para citar algumas do Gilberto Gil que contém religião no seu conteúdo.
·   “Oração de mãe menininha”, “Caminhos do mar” – Dorival Caymmi.
·   “Mantra” – Nando Reis – abertamente relacionada à religião Hare Krishna.
·   E o que dizer de alguns estrangeiros como U2 e Take 6 (boa parte da discografia), Bob Dylan (CD So You Wanna Go Back to Egypt), John Coltrane (CD A Love Supreme), Sting (CD If on a winter´s night...) e tantos outros? Afinal, seu critério de escolha para colocação de CDs no blog é “religioso” ou “musical”?
Fulano Sicrano, hoje há um movimento dentro do cenário da música com letras cristãs chamado por muitos como “MPB cristã”, com gente fazendo boas músicas e poesias. Só para citar alguns: Expresso Luz, Gladir Cabral, Arlindo Lima, Tiago Vianna, João Alexandre, Carlinhos Veiga (citado no seu blog, porém em um CD sem “conotação religiosa”!), Glauber Plaça, Diego Venâncio, Cíntia e Silvia, Quarteto Vida, Grupo Logos, Elly Aguiar, Rogério Pinheiro, Marco Neves, Aristeu Pires, Carlos Sider, Daniel Maia, Stênio Marcius, Silvestre Kuhlmann, Edson e Tita Lobo, Shirley Espíndola, Maurício Caruso, Roberto Diamanso, Crombie, Jorge Camargo, Sal da Terra, Adhemar de Campos, Jorge Ervolini, Nelson Bomilcar, Gerson Borges, Bruno Albuquerque entre diversos outros. Gente escondida do grande público por trabalhar parte de seu repertório (alguns, o repertório todo – mas, artista tem que ter essa liberdade: cantar o que quiser sobre qualquer tema!) com letras relacionadas às histórias bíblicas ou à sua fé.
Concordamos que o que chega de informação ao grande público como música com letras cristãs – denominada como “gospel” pela mídia -, não tem qualidade em boa parte de sua produção (e que fique claro que não estamos generalizando): músicas carregadas de frases-chavão, arranjos pobres e falta de originalidade...
Mas esse grupo citado acima (nos incluímos nele) não faz música com essa intenção. O objetivo é cantar sobre o que nos aflige, nos dá alegria, sobre ecologia, política, cotidiano, arte e também, fé, assim como Gil e Caymmi já cantaram!
Escutamos música que nos prende atenção, nos emociona, nos ensina, e até nos entretém. Posso dizer tranquilamente que o grupo citado ouve (ou já ouviu com admiração) Lenine, todo o Clube da Esquina, João Gilberto, Tom Jobim, Boca Livre, Renato Teixeira, Villa-Lobos, Tião Carreiro e Pardinho, Almir Sáter, Mônica Salmaso, Pau-Brasil, Cama de Gato, Gilberto Gil, Caetano Veloso, todos os Caymmi, Chico Pinheiro, Rosa Passos, Ivan Lins, Chico Buarque, Legião Urbana, Cazuza e vários do rock brazuca, entre tantos e tantos inclusos na sua preciosa coletânea.
Fulano, todas essas palavras aí em cima são para pedir licença: não nos inclua no ramo “gospel” porque não fazemos parte dele (e nem queremos!), mas, também não nos coloque no “limbo musical”, onde não somos NADA. Nossas músicas continuarão tendo “conotação religiosa” quando isso trouxer à tona nossos sentimentos e inspiração artística, mas não gostaríamos de sermos taxados de artistas de “um tema só”, porque não somos (no último CD, cantamos sobre o amor em uma metáfora relacionada às quatro estações climáticas e em outra, sobre a arte do grafite paulista, por exemplo).
Nosso trabalho novo está à disposição do seu blog. Provavelmente disponibilizaremos os outros três álbuns também... Não gravamos as músicas apenas para vender, mas, principalmente para sermos ouvidos! Esperamos que quando os internautas nos procurarem no seu blog ou no restante da mídia, sejamos “Um que Tenha”... AMÉM!
Sérgio Pereira e Marivone Lobo formam a dupla Baixo e Voz

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