quarta-feira, julho 07, 2010

"O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos".

Estou, tardiamente, lendo o livro Terra Sonâmbula de Mia Couto. O pouco do que já li desse escritor, falou profundamente à minha alma. 
Deixo aqui uma resenha do livro:



Terra Sonâmbula.
"O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos". É então, para voltar a ver, que o menino guarda suas fantasias no bojo de uma viagem, as páginas do seu diário transformadas em páginas de uma estrada.
No Moçambique pós-independência, mergulhado em uma devastadora guerra civil, em meio a perigos e carências de toda ordem, o menino Muidinga e seu relutante protetor, o velho e alquebrado Tuahir, caminham a esmo, fugindo do morticínio insano causado pelas guerrilhas que lhes destruiu a base material da existência e sua teia de relações familiares e sociais. Encontrar os verdadeiros pais de Muidinga, que foi recolhido por Tuahir num campo de refugiados, é a justificativa da viagem. Mas, na verdade, os dois apenas procuram se manter vivos, tarefa que nem sempre parece possível.
Muidinga não se recorda de sua infância, não se recorda de nada. É como se sua vida começasse depois do encontro com Tuahir, que o recolheu quando este, à beira da morte, ia sendo enterrado. A doença deixou o menino sem memória, e Tuahir “teve que lhe ensinar todos os inícios: andar, falar, pensar”.
 
Muidinga e Tuahir, fatigados de andar, encontram um Machimbonbo (1) incendiado. No interior, o veículo está cheio de corpos carbonizados; quando vão enterrá-los, o velho e o menino se surpreendem com um outro corpo estirado junto à estrada morto recentemente a tiro. Junto dele há uma mala, onde são encontrados os cadernos que contam a história de Kindzu, o morto em questão.
A partir daí, duas histórias são narradas paralelamente: a referida viagem de Tuahir e Muindinga, e o percurso de Kindzu em busca dos naparamas (2); seu encontro com Farida, mulher por quem se apaixona; a busca por Gaspar, filho de Farida.
 
A postura de Kindzu muda ao conhecer Farida e sua trajetória de vida. Farida mora em um navio abandonado, refugia-se de si mesma, de sua má sorte. Foi vítima da guerra e da hostilidade do português Romão Pinto, com quem teve um filho que não era seu, e que logo que tirado do ventre foi entregue para a Igreja “como se fosse encomenda de ninguém, um lapso da vida”.
E, após muitos desencontros, Kindzu conclui que encontrar Gaspar seria tarefa quase impossível: “voltava sem trazer Gaspar. Perdido estava o amor. Farida não aceitaria a minha falta de promessa”.
O mais magnífico na narrativa é o último capítulo do livro, o desfecho. No sonho de Kindzu, refletida numa visão cuja descrição finaliza o romance, a paz também foi resgatada, e com ela a possibilidade de as pessoas recuperarem a sua humanidade. Kindzu, finalmente um naparama, salva seu irmão Junhito, quando este é ameaçado pelas personagens que representam a corrupção, a violência, a extorsão, enfim, os “fazedores de guerra”. Kindzu deseja se “apagar, perder voz, desexistir”. O sonho é revelador, confuso... é presságio do fim. E o final é surpreendente, oferece ao leitor a hipótese de Muidinga ser Gaspar, e que no momento de sua morte Kindzu finalmente iria ao encontro do pequeno, quando é acertado, não se sabe por quem. Um final suspenso, ou melhor, uma interpretação para cada leitor.
 
(1) Machimbonbo: ônibus.
 
(2) Naparamas: designação dos guerreiros tradicionais que usam apenas arco e flecha, e que se supõe estarem protegidos pelos feiticeiros contra aação das balas.


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