sexta-feira, novembro 20, 2009

Vassum Crisso

por: Marcelo Santos

Mesmo com 12 milhões de afrodescendentes evangélicos, os negros ainda lutam por seu espaço no protestantismo brasileiro

Onde você guarda o seu racismo? É com este slogan publicitário que o governo federal instituiu 2005 como o Ano da Promoção da Igualdade Racial e pretende colocar a discussão na agenda nacional. Nestes tempos politicamente corretos, falar sobre a questão racial no país ganha relevância, ainda mais levando-se em conta que 70 milhões de brasileiros, cerca de 40% da população, são negros ou afrodescendentes. Um observador desavisado poderia até apostar que, aqui, existe a tal democracia racial. Engano. O país que já foi saudado como mulato faceiro e possui fortes traços da cultura negra tem, ao mesmo tempo, exemplos claros de desigualdade de oportunidades oferecidas aos seus dois principais grupos étnicos. O acesso à educação, ao mercado de trabalho e os padrões de remuneração são exemplos gritantes: entre dez brasileiros com curso superior, apenas um é negro. Aqui, um homem negro recebe em média, a metade do que ganha um branco.
Mais: entre os negros adultos, 21,5% são analfabetos – o índice não passa de 15% na população em geral. São eles também as maiores vítimas da violência. De cada 100 mil jovens negros, 68,4 são assassinados todos os anos. Entre a juventude branca, tal estatística cai para menos de um terço disso. Mesmo passados 117 anos Abolição, a herança de quatro séculos de regime escravocrata continua sendo uma marca da exclusão social sofrida pelos afrodescendentes brasileiros. Um quadro que, apesar dos avanços jurídicos – hoje, crimes de discriminação racial e injúria étnica costumam ser punidos com rigor – e medidas institucionais, como a adoção de cotas para negros nas universidades públicas, ainda está longe de ser mudado.
Mas o que isso tem a ver com a fé evangélica? Infelizmente, muito. Se o tema racismo é assunto espinhoso para a sociedade, torna-se ainda mais árido entre os crentes, que insistem em negá-lo. No entanto, sem muita razão – basta uma olhada no passado para ver que, desde que chegou ao país, o protestantismo pouco tem feito em relação ao resgate social dos negros. Dos missionários europeus e norte-americanos que aqui desembarcaram no século 19 trazendo a semente da fé evangélica, quase todos calaram a boca diante da escravidão – isso, quando não eram, eles próprios, donos de escravos. “O papel da Igreja Evangélica naquele período foi muito aquém do que se poderia esperar”, destaca o professor e doutor em história José Carlos Barbosa, da Universidade Metodista de Piracicaba, interior de São Paulo. Ele é autor de um livro cujo título já diz tudo: Negro não entra na igreja – Espia da banda de fora (Editora Umesp).
Segundo o estudioso, a fase de implantação do protestantismo no Brasil não teve a intenção de transformar a sociedade na questão racial. Tanto, que a Igreja Evangélica passou ao largo do processo político que levou à extinção da escravidão, em 13 de maio de 1888. Membro da Igreja Metodista, Barbosa diz que se interessou pelo tema quando, ainda estudante de teologia, encontrou um documento do século 19 que relatava o naufrágio de um navio negreiro na costa brasileira. No documento, o autor, cristão, agradecia a Deus por ter saído são e salvo – no entanto, lamentava o prejuízo com a perda de “450 peças”, ou seja, homens, mulheres negros. “Eu não conseguia entender como aqueles crentes conseguiam falar em Deus, ir à igreja e, ao mesmo tempo, explorar seus escravos”, indigna-se.
Para Barbosa, este tipo de conduta tinha raízes profundas. “Com o fim da Guerra da Secessão nos Estados Unidos, em 1865, pelo menos uns 30 mil protestantes vieram para cá e se estabeleceram em lugares como o interior paulista. Eles buscavam reproduzir o modelo de vida que tinham lá, inclusive o escravocrata”. O pesquisador conta até um fato pitoresco que evidencia a mentalidade subjugada dos negros da época, mesmo diante de cristãos. “Quando um grupo de negros vindo da roça encontravam brancos pelo caminho, costumavam saudá-los bradando Vassum Crisso, um dito nascido da contração da expressão ‘Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo’”. Segundo Barbosa, era uma forma de aqueles negros dizerem que, apesar da diferença racial, comungavam da mesma fé. “Era quase como um apelo, do tipo ‘não nos maltratem, somos dos seus’”.


Africanidade – Se a Abolição, definitivamente, não acabou com o problema da discriminação ao negro no Brasil – e a realidade sócio-econômica do país está aí mesmo para provar –, por que discutir racismo em um país onde há tanta miscigenação, inclusive nas igrejas? Para o pastor batista Marcos Davi de Oliveira, existem, sim, boas razões para isso. “Existe uma pregação que valoriza o branqueamento. No imaginário evangélico, o pecado é negro”, aponta. “Além de canções como Alvo mais que a neve, basta ver que nossas representações de Jesus Cristo são sempre como um homem branco ou com traços orientais, mas nunca negro ou pardo.” O paradoxal é que as igrejas evangélicas, e as pentecostais em particular, têm numerosa membresia negra. “Existe uma africanidade na liturgia pentecostal. Uma coisa muito parecida com os cultos em quilombos”, explica Oliveira, autor do livro A religião mais negra do Brasil – Por que mais de oito milhões de negros são pentecostais, lançado no fim do ano passado pela Editora Mundo Cristão.
“As religiões de matriz africana trabalham a lógica do poder sobrenatural e gradativamente os negros foram percebendo que havia mais poder no pentecostalismo”, salienta o pastor Ariovaldo Ramos. Ele é um conhecido militante de causas sociais no país e integra o Conselho de Segurança Alimentar da Presidência da República. Apesar dessa afinidade que a cada dia leva mais negros para as fileiras pentecostais, ele observa que a Igreja Evangélica não tem sido eficaz na valorização da negritude. “Ela tem uma teologia que demoniza o negro”, acusa. Ariovaldo acredita que a chamada teologia da prosperidade seja um dos principais focos de disseminação do racismo. “Por definição, teologia da prosperidade é uma teologia de segregação, de opressão – então, acaba contaminando aquela pureza da Igreja Evangélica popular”.
Assim como na sociedade, também entre os evangélicos há momentos em que as manifestações raciais discriminatórias eclodem. Uma delas, ocorrida recentemente, chegou à Justiça. O pedreiro Amilton Artur dos Santos, de 65 anos, acusou o pastor Luis Alberto Bretas, da Igreja do Evangelho Quadrangular do Bairro dos Palmares, em Belo Horizonte (MG) de ter-lhe dirigido ofensas raciais. Ele tentou receber o valor combinado por um serviço prestado ao pastor. Bretas, que é branco, ficou furioso e o teria chamado de “macaco fedorento”. “Fiquei muito abalado. Achei estranho um pastor falar daquele jeito comigo”, lamenta. A dívida, segundo ele, era de apenas 370 reais. Aconselhado por amigos, Santos resolveu prestar queixa contra o pastor, que foi condenado em primeira instância a pagar uma indenização de R$ 5 mil. Recorreu e o processo continua em andamento.


Discurso racista – Mulher, negra e favelada. Foi com estes predicados pessoais que uma certa Benedita da Silva lançou-se na política, em 1982, concorrendo a uma vaga de vereadora no Rio de Janeiro. Conseguiu eleger-se e, de lá para cá, não parou mais, galgando vários cargos públicos até então inéditos para uma afrodescendente – deputada, senadora, governadora e finalmente ministra – e tornando-se a principal referência negra da Igreja brasileira. Atualmente morando nos Estados Unidos, Benedita, 62 anos, não esconde uma constatação: “Aqui, a Igreja negra se impõe. No Brasil, não. Onde você encontra negros na liderança das igrejas?”, questiona. De fato, entre as grandes denominações brasileiras, não há pastores negros em posição de efetivo comando. “A Igreja brasileira vive o mito da igualdade racial”, aponta.
Benedita diz que, historicamente, o negro brasileiro sempre desejou enquadrar-se aos padrões da sociedade branca. Ela sentiu isso literalmente na pele. “Lembro-me que, quando criança, cheguei a tomar banho com água sanitária e a me raspar com telha, para ver se clareava”, lembra, divertida. Contudo, logo ela percebeu que só a tomada de consciência e a mobilização seriam capazes de mudar alguma coisa. Para Benedita, cabe à Igreja cristã papel fundamental no processo de inclusão social dos negros, sobretudo nas camadas menos favorecidas. “É natural que uma população que ainda é tão marginalizada, como é o caso dos negros deste país, encontre no Evangelho conforto espiritual para seus conflitos e revoltas”. Por outro lado, ressalva, os evangélicos devem evitar reproduzir um discurso comum ao movimento negro – aquele que prega que a identidade racial está ligada às religiões afrodescendentes. “Isso não é democrático. Os africanos que se converteram ao islamismo ou ao catolicismo não deixaram de ser africanos por isso. Portanto, ninguém é mais ou menos negro pela religião que professa”, sentencia.
“Temos como tarefa maior a quebra do mito de que nossos antepassados africanos somente trouxeram crenças baseadas nos orixás”, faz coro a professora Maria da Fé Silva Viana, coordenadora da Pastoral de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, uma denominação de vanguarda em relação a temas sociais. Ela acredita que os crentes reproduzem, a seu modo, preconceitos raciais. “Nossa literatura religiosa ainda tem figuras de negros e negras apenas em situações engraçadas ou vexatórias. Usamos linguagem racista, como o termo denegrir, e associamos ao diabo a cor preta”, avalia.
Até mesmo certas distorções bíblicas propagadas pelos evangélicos colaboram para manter vivo o preconceito. O livro do Gênesis é, neste sentido, um dos mais manipulados da Bíblia. Nele há a narrativa da maldição proferida por Noé contra seu filho primogênito Cam – “Escravo de escravos será para seus irmãos”, condenou o patriarca. Especula-se que Cam seria um elemento negróide. Pior é a versão racista dada ao castigo que Caim recebeu de Deus por ter assassinado seu irmão, Abel. A Bíblia diz que o Senhor pôs-lhe um sinal para que, fugitivo, não fosse reconhecido e morto pelo crime que cometera. Pois há pastores que garantem que a tal marca teria consistido em... ser transformado num negro. “Essas são algumas das muitas mentiras para justificar a escravidão e a discriminação”, protesta o pastor e doutor em sociologia Paulo de Sousa Oliveira, de São Paulo. “A Palavra de Deus, em nenhum momento, autoriza segregação.” Para o teólogo e historiador Walter Passos, de Salvador (BA), falta mais informação sobre o tema. “Na minha opinião, os seminários deveriam introduzir no currículo uma cadeira de teologia negra”, sugere. Ele tem até um livro com este título.


Inclusão religiosa – É inegável, por outro lado, que as igrejas têm obtido avanços quanto à inserção da cultura negra na sua liturgia. São cada vez mais comuns, por exemplo, músicas de louvor em ritmos como rap, raggae e samba. Os instrumentos de percussão – agogô, afoxé e bongô, entre outros –, outrora malvistos por conta de suas associações com os terreiros de umbanda, são usados em muitos cultos. Até mesmo a capoeira, típico esporte originado de lutas africanas, tem encontrado seu espaço entre os evangélicos. Em Santos, no litoral de São Paulo, a Associação de Capoeira Nova Visão, dirigida pelo Mestre Chocolate, faz o maior sucesso. Chocolate, ou melhor, Altair José dos Santos, diz que ao se converter havia abandonado a capoeira por acreditar que a prática seria incompatível com sua fé. Mas voltou atrás quando um grupo de pastores visitou sua igreja, a Presbiteriana Independente Getsêmani. “Eles contaram que faziam roda na rua e, quando enchia de gente para ver, paravam o jogo e falavam de Jesus”.


Em 1989, ele decidiu montar uma academia de capoeira dentro da própria igreja. “Deus nos deu a Nova Visão para transformar o meio onde vivemos”, acredita. Segundo o capoeirista, a idéia incomodou alguns crentes. “Certa vez, uma irmã me disse que preferia me ver bem longe da igreja”, confessa. Mas ele não desistiu – conquistou a confiança da igreja e hoje os frutos do trabalho são muitos. Nas rodas, as músicas ao som do berimbau são todas com temas evangelísticos. Chocolate também adquiriu respeito entre os capoeiristas da região, tornando-se o presidente da Liga Santista.
Embora, tradicionalmente, os grupos em favor da consciência negra sejam ligados às religiões de matriz africana, hoje já é possível ver crentes militando em entidades do gênero. A Sociedade Cultural Missões Quilombo, por exemplo, é coordenada pelo capixaba Hernani da Silva, membro da Igreja Pentecostal O Brasil para Cristo. Hernani conta que se sentiu motivado a trabalhar com a questão quando, em 1988, viu a passeata em comemoração ao Centenário da Abolição. “Fiquei emocionado em ver tantos negros juntos. Comecei a chorar e Deus falou ao meu coração que aquele era meu ministério”, lembra. De lá para cá, ele tem se destacado no combate ao racismo dentro das igrejas evangélicas. Recentemente, foi homenageado pelo prestigiado jornalista Gilberto Dimenstein em seu livro Heróis invisíveis, que registra a trajetória de 50 personagens anônimos que lutam pela transformação social de suas comunidades.
Hernani, em conjunto com outros grupos, comemorou a Semana da Consciência Negra, em novembro do ano passado, com palestras sobre temas como “Cristianismo africano”, “Liturgia negra” e “Consciência negra e a Igreja”, entre outros. As discussões foram realizadas simultaneamente em diversas cidades, etre elas, Salvador, Rio e São Paulo. Para ele, tal movimentação não tem apenas resultados teóricos, mas práticos – pelo menos, no sentido de despertar o negro evangélico para pequenas coisas do dia-a-dia que, embora despercebidas, embutem elevada dose de preconceito racial. “Cheguei a ver uma criança negra raspar o braço para ver se retirava a cor de sua pele. Ela havia aprendido que os pecadores possuem um coração negro”.


“Nariz chato” – No bairro de Cidade Tiradentes, um dos mais carentes e violentos da capital paulista, o pastor Djalma Correa, da Igreja do Evangelho Quadrangular, costuma discutir a questão racial com sua comunidade. “Muitas pessoas acreditam que falar sobre racismo é provocar divisão. Eu mesmo já fui muito incompreendido por isso”, revela. O pastor diz que já foi discriminado por ser negro: “Em outra igreja onde congregava, um senhor chegou para mim e disse que eu não poderia pregar porque tinha o nariz chato e por causa da suposta maldição de Caim”. Djalma, que também trabalha como assistente social na região, já percebeu que, para ser bem aceito nas igrejas, o crente negro deve passar por um processo de branqueamento, ou seja, precisa esquecer suas raízes e sua cultura, substituindo-as pelos moldes brancos.
A igreja que dirige, em sua maioria formada por afrodescendentes, tem conseguido mudar um pouco da dura realidade local. “Nossos jovens têm se conscientizado que através de muito estudo, dedicação e, é claro, fé, poderemos mudar nossa condição social”, aponta o pastor. Tal transformação também é o objetivo dos acadêmicos da Escola Superior de Teologia (EST), em São Leopoldo (RS), região de forte predominância étnica branca, já que foi colonizada basicamente por alemães e italianos. A EST é ligada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Lá, desde 1995 funciona o Grupo Identidade, sob o comando da estudante Selenir Gonçalves Kronbauer. “É um espaço de convivência e auxílio mútuo durante o período de formação”, explica.
O grupo participou do último Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro, com uma mesa de debates intitulada “Pistas para uma leitura afro-descendente da Bíblia”. Sendo uma igreja fundada por europeus e de muita tradição entre os descendentes dos imigrantes, é natural que a IECLB possua poucos negros entre seus pastores e membros. “Mas a nossa idéia não é fundar uma comunidade exclusivamente voltada para negros”, explica Selenir, que é afrodescendente. “Racismo e preconceito são problemas sociais cujos efeitos e soluções também devem incluir os brancos e outros grupos”, defende. Na mesma linha de rejeição ao exclusivismo vai o pastor Sérgio Melo, da Azusa – Igreja de Deus em Cristo, em São Paulo. A comunidade é uma extensão da igreja americana Church of God in Christ, que fica em Memphis, no Tennessee (EUA). Foi lá que o célebre pastor e ativista negro Martin Luther King Jr pregou pela última vez, em 1968, um dia antes de ser assassinado na sacada do hotel onde estava hospedado.
O pastor lembra que igrejas étnicas costumam florescer em ambientes mais radicais. “Não devemos esquecer que o que levou a Igreja americana a essa postura foi a questão da discriminação, o que não seria saudável no nosso país”, continua. No entanto, o pastor, que tem entre os membros de sua igreja uma maioria afrodescendente, não deixa o tema de lado e realiza treinamentos entre pastores que queiram implantar um ministério voltado a fortalecer as raízes negras no meio evangélico. “A Igreja precisa contextualizar seu discurso no que se refere à questão da negritude”, opina.
Mas se ainda falta um longo caminho para que o elemento negro usufrua plenamente de sua cidadania e dignidade sociais, dentro e fora da Igreja, muitos paradigmas têm sido quebrados em relação à questão racial. Até mesmo a tradicional figura de Cristo que povoa o imaginário coletivo – branco, de olhos e cabelos claros – vem sendo, digamos, redesenhada. No fim do ano passado, o jornal inglês New Nation, uma publicação destinada à comunidade negra britânica, listou as cem personalidades negras mais influentes da História. Evidentemente, mitos como Martin Luther King e Nelson Mandela estavam lá. Mas adivinhem quem encabeçava a lista? Jesus Cristo. Ele foi eleito o mais importante negro de todos os tempos. Exageros panfletários à parte, o fato é que a simples suposição de que o Filho de Deus, quando viveu na Terra, possa ter pertencido a outro grupo étnico que não o branco já é um grande avanço. E afinal de contas, a eventual cor da pele do Salvador não tem nenhuma importância diante do que ele fez, não é mesmo? (Colaborou Carlos Fernandes)


A polêmica das cotas
Desde que o governo federal sinalizou a possibilidade de instituir cotas nas universidades públicas para estudantes negros e indígenas, em 2003, manifestações dos mais diversos setores da sociedade eclodiram, tanto a favor quanto contra. Mais que um simples debate, o tema enveredou-se por um terreno espinhoso, colocando em xeque conceitos antes aceitos pela maioria da sociedade, como o de que o Brasil seria uma democracia racial.
Pela proposta do governo, que tramita no Congresso, as instituições públicas de ensino superior são obrigadas a reservar metade de suas vagas a estudantes egressos de escolas públicas, além de elementos negros, pardos e indígenas. Seria uma forma compensatória de inclusão social, já que a proporção desses alunos que se formam a cada ano é pelo menos cinco vezes menor do que estudantes brancos. O grande problema é definir quem realmente é negro num país onde a miscigenação racial já vem do tempo da colonização.
Enquanto o Legislativo estuda a medida, algumas instituições, como a Universidada de Brasília e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro já adotaram o sistema de cotas, em fase experimental. Só que a seleção dos vestibulandos carece de critérios técnicos, baseando-se somente na declaração do candidato acerca de sua origem étnica. A Justiça já tem sido procurada pelos dois lados – há estudantes que se dizem negros reclamando o direito às cotas e estudantes que se consideram brancos e se queixam de que foram preteridos, embora aprovados pela nota, em favor dos cotistas. Reitores de universidades públicas já se mostraram favoráveis à implementação de cotas, desde que o número de vagas aumente. Caso contrário, argumentam, o modelo pode vir a excluir quem, pelo mérito, teria direito às vagas. É uma discussão que vai longe. (Claiton Cesar)


Uma Igreja cada vez mais negra
O número de membros negros nas igrejas evangélicas só é inferior ao de afrodescendentes católicos se forem levados em conta os números absolutos. Eles são 55 milhões entre os 125 milhões de fiéis da Igreja Romana. Os números, levantados pelo pastor e escritor Marco Davi de Oliveira e publicados em seu livro A religião mais negra do Brasil, apontam que as igrejas evangélicas, em especial as do segmento pentecostal, têm arregimentado muitos fiéis entre os indivíduos de etnia negra (assim são considerados, estatisticamente, as pessoas pardas e pretas). Segundo as amostragens do Censo 2000, as igrejas evangélicas somam cerca de 12 milhões de negros – ou seja, algo como 45% do total de evangélicos do país. As igrejas pentecostais e neopentecostais somam 8,6 milhões de membros negros.


Negros, ativistas e protestantes
“Eu tenho um sonho”, frase pronunciada num célebre discurso do pastor americano Martin Luther King Jr, entrou para a história. Ativista negro, ele enfrentou um dos mais duros períodos de segregação racial nos Estados Unidos, durante as décadas de 1940, 50 e 60. Na época, negros não podiam freqüentar as mesmas escolas que os brancos e a Ku-Klux-Klan, entidade racista, promovia atentados e perseguições. Doutor em filosofia e ministro batista, King cedo envolveu-se na luta pelos direitos civis dos cidadãos negros. Sua campanha contra as empresas de ônibus de Atlanta, que restringiam o acesso de afrodescendentes aos seus coletivos, chamou a atenção para o tema.
Preso duas vezes, o pastor ativista virou uma celebridade. Os atos públicos que promoveu atraíram multidões – caso da Marcha sobre Washington, em 1964, que reuniu 200 mil pessoas e abriu caminho para a promulgação da Lei dos Direitos Civis. Sua atuação valeu-lhe o Prêmio Nobel da Paz. Mas o pastor foi assassinado quatro anos depois, num hotel de Memphis, no Tennessee, onde participava de ato político.
Outro célebre defensor dos direitos dos negros é Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul. Ele liderou a luta contra a política do apartheid (“separação”) que vigorou naquele país por quase 40 anos. Convertido ao metodismo na infância, Mandela saiu de sua tribo, os themba, e iniciou sua militância contra os interesses econômicos que mantinham as grandes potências mundiais alheias ao problema racial. Colonizada por britânicos, a África do Sul era dominada por uma minoria branca, que impunha toda sorte de discriminações à majoritária população negra.
Nelson Mandela iniciou um levante contra o governo racista sul-africano. Preso em 1961, foi condenado à prisão perpétua. Na cadeia, tornou-se ícone da negritude. Os clamores internacionais por sua libertação enfraqueceram o regime do apartheid. Solto em 1990, ele juntou-se ao então presidente Frederik de Klerk, branco, para costurar um governo multirracial. Sua luta foi reconhecida com o Nobel da Paz de 1993. No ano seguinte, Mandela foi eleito presidente de seu país, consolidando as mudanças por que tanto se batera. Hoje, aos 86 anos, Mandela é uma lenda viva.
Aqui no Brasil, um episódio ocorrido no início do século 20 elevou o então anônimo marinheiro João Cândido Felisberto à condição de herói anti-racismo. Filho de ex-escravos, ele liderou um movimento contra as discriminações impostas pela Armada brasileira aos marujos negros – além de receberem soldos menores e menos alimentação, os de cor, como eram chamados, sofriam até castigos físicos ante qualquer deslize. A chamada Revolta da Chibata, fomentada por Cândido, tomou o controle de quatro navios ancorados na Baía de Guanabara, no Rio. Os amotinados ameaçavam bombardear a então sede do governo federal, no Palácio do Catete.
Após um acordo com o governo, que prometera abolir os maus tratos e anistiar os revoltosos, Cândido e seus companheiros foram presos e expulsos da Marinha. Mas o ex-marujo virou uma celebridade. Até marchinhas de carnaval o homenagearam com o título de Almirante Negro. Cândido passou a ganhar a vida como pescador e biscateiro, carregando a fama de subversivo até sua morte, em 1969. O que poucos sabem é que, segundo o historiador baiano Walter Passos, anos após a sua expulsão das Forças Armadas, João Cândido se converteu ao Evangelho. Ele chegou a freqüentar a Igreja Metodista de São João de Meriti, na Baixada Fluminense.


Avivamento inter-racial
O chamado Avivamento da Rua Azusa, ocorrido em Los Angeles, nos EUA, há 100 anos, foi um dos mais importantes movimentos evangélicos da história da Igreja. No raiar do século 20, a sociedade americana, impregnada pelo racismo, presenciou uma onda carismática varrer as igrejas do país. E à frente do movimento estava justamente um pastor negro, William Joseph Seymour. De origem humilde, cego de um olho e sem formação escolar, Seymour chegou a ser discriminado na igreja – para assistir aulas numa escola bíblica freqüentada por brancos, ele tinha que se sentar no corredor, enquanto ouvia as explicações através da porta entreaberta da sala.
Após ser expulso de uma congregação afro-americana por pregar a doutrina pentecostal, Seymour iniciou uma série de reuniões inter-raciais em uma residência particular. À medida que a notícia sobre curas e milagres espirituais se espalhou, cresceu também o número de pessoas nos cultos. O grupo então mudou-se para uma estrebaria desativada na Rua Azusa. Ali, pessoas de todo o país e até do exterior vinham presenciar a manifestação do poder de Deus.
Apesar do avivamento, a questão racial provocava situações bizarras. Seymour tinha o cuidado de dispor os bancos em círculo, para que os freqüentadores negros não dessem as costas aos brancos. Como nem todos os crentes brancos aceitavam que o pastor orasse por eles, Seymour, para evitar constrangimentos, costumava ajoelhar-se atrás do púlpito feito com caixas de sapatos e orar dali. Enciumados da liderança espiritual exercida por aquele negro, os outros pastores da cidade passaram a evitá-lo. Seymour não era convidado para pregar nem participar de convenções. Quando ia a um culto, sequer tinha sua presença anunciada. Mesmo assim, William Seymour continuou com a missão da Rua Azusa – que se tornou uma igreja quase toda negra – até sua morte, em 1922.(Marcos Stefano)


Marcelo Santos
Mesmo com 12 milhões de afrodescendentes evangélicos, os negros ainda lutam por seu espaço no protestantismo brasileiro


Onde você guarda o seu racismo? É com este slogan publicitário que o governo federal instituiu 2005 como o Ano da Promoção da Igualdade Racial e pretende colocar a discussão na agenda nacional. Nestes tempos politicamente corretos, falar sobre a questão racial no país ganha relevância, ainda mais levando-se em conta que 70 milhões de brasileiros, cerca de 40% da população, são negros ou afrodescendentes. Um observador desavisado poderia até apostar que, aqui, existe a tal democracia racial. Engano. O país que já foi saudado como mulato faceiro e possui fortes traços da cultura negra tem, ao mesmo tempo, exemplos claros de desigualdade de oportunidades oferecidas aos seus dois principais grupos étnicos. O acesso à educação, ao mercado de trabalho e os padrões de remuneração são exemplos gritantes: entre dez brasileiros com curso superior, apenas um é negro. Aqui, um homem negro recebe em média, a metade do que ganha um branco.
Mais: entre os negros adultos, 21,5% são analfabetos – o índice não passa de 15% na população em geral. São eles também as maiores vítimas da violência. De cada 100 mil jovens negros, 68,4 são assassinados todos os anos. Entre a juventude branca, tal estatística cai para menos de um terço disso. Mesmo passados 117 anos Abolição, a herança de quatro séculos de regime escravocrata continua sendo uma marca da exclusão social sofrida pelos afrodescendentes brasileiros. Um quadro que, apesar dos avanços jurídicos – hoje, crimes de discriminação racial e injúria étnica costumam ser punidos com rigor – e medidas institucionais, como a adoção de cotas para negros nas universidades públicas, ainda está longe de ser mudado.
Mas o que isso tem a ver com a fé evangélica? Infelizmente, muito. Se o tema racismo é assunto espinhoso para a sociedade, torna-se ainda mais árido entre os crentes, que insistem em negá-lo. No entanto, sem muita razão – basta uma olhada no passado para ver que, desde que chegou ao país, o protestantismo pouco tem feito em relação ao resgate social dos negros. Dos missionários europeus e norte-americanos que aqui desembarcaram no século 19 trazendo a semente da fé evangélica, quase todos calaram a boca diante da escravidão – isso, quando não eram, eles próprios, donos de escravos. “O papel da Igreja Evangélica naquele período foi muito aquém do que se poderia esperar”, destaca o professor e doutor em história José Carlos Barbosa, da Universidade Metodista de Piracicaba, interior de São Paulo. Ele é autor de um livro cujo título já diz tudo: Negro não entra na igreja – Espia da banda de fora (Editora Umesp).
Segundo o estudioso, a fase de implantação do protestantismo no Brasil não teve a intenção de transformar a sociedade na questão racial. Tanto, que a Igreja Evangélica passou ao largo do processo político que levou à extinção da escravidão, em 13 de maio de 1888. Membro da Igreja Metodista, Barbosa diz que se interessou pelo tema quando, ainda estudante de teologia, encontrou um documento do século 19 que relatava o naufrágio de um navio negreiro na costa brasileira. No documento, o autor, cristão, agradecia a Deus por ter saído são e salvo – no entanto, lamentava o prejuízo com a perda de “450 peças”, ou seja, homens, mulheres negros. “Eu não conseguia entender como aqueles crentes conseguiam falar em Deus, ir à igreja e, ao mesmo tempo, explorar seus escravos”, indigna-se.
Para Barbosa, este tipo de conduta tinha raízes profundas. “Com o fim da Guerra da Secessão nos Estados Unidos, em 1865, pelo menos uns 30 mil protestantes vieram para cá e se estabeleceram em lugares como o interior paulista. Eles buscavam reproduzir o modelo de vida que tinham lá, inclusive o escravocrata”. O pesquisador conta até um fato pitoresco que evidencia a mentalidade subjugada dos negros da época, mesmo diante de cristãos. “Quando um grupo de negros vindo da roça encontravam brancos pelo caminho, costumavam saudá-los bradando Vassum Crisso, um dito nascido da contração da expressão ‘Louvado seja nosso Senhor Jesus Cristo’”. Segundo Barbosa, era uma forma de aqueles negros dizerem que, apesar da diferença racial, comungavam da mesma fé. “Era quase como um apelo, do tipo ‘não nos maltratem, somos dos seus’”.


Africanidade – Se a Abolição, definitivamente, não acabou com o problema da discriminação ao negro no Brasil – e a realidade sócio-econômica do país está aí mesmo para provar –, por que discutir racismo em um país onde há tanta miscigenação, inclusive nas igrejas? Para o pastor batista Marcos Davi de Oliveira, existem, sim, boas razões para isso. “Existe uma pregação que valoriza o branqueamento. No imaginário evangélico, o pecado é negro”, aponta. “Além de canções como Alvo mais que a neve, basta ver que nossas representações de Jesus Cristo são sempre como um homem branco ou com traços orientais, mas nunca negro ou pardo.” O paradoxal é que as igrejas evangélicas, e as pentecostais em particular, têm numerosa membresia negra. “Existe uma africanidade na liturgia pentecostal. Uma coisa muito parecida com os cultos em quilombos”, explica Oliveira, autor do livro A religião mais negra do Brasil – Por que mais de oito milhões de negros são pentecostais, lançado no fim do ano passado pela Editora Mundo Cristão.
“As religiões de matriz africana trabalham a lógica do poder sobrenatural e gradativamente os negros foram percebendo que havia mais poder no pentecostalismo”, salienta o pastor Ariovaldo Ramos. Ele é um conhecido militante de causas sociais no país e integra o Conselho de Segurança Alimentar da Presidência da República. Apesar dessa afinidade que a cada dia leva mais negros para as fileiras pentecostais, ele observa que a Igreja Evangélica não tem sido eficaz na valorização da negritude. “Ela tem uma teologia que demoniza o negro”, acusa. Ariovaldo acredita que a chamada teologia da prosperidade seja um dos principais focos de disseminação do racismo. “Por definição, teologia da prosperidade é uma teologia de segregação, de opressão – então, acaba contaminando aquela pureza da Igreja Evangélica popular”.
Assim como na sociedade, também entre os evangélicos há momentos em que as manifestações raciais discriminatórias eclodem. Uma delas, ocorrida recentemente, chegou à Justiça. O pedreiro Amilton Artur dos Santos, de 65 anos, acusou o pastor Luis Alberto Bretas, da Igreja do Evangelho Quadrangular do Bairro dos Palmares, em Belo Horizonte (MG) de ter-lhe dirigido ofensas raciais. Ele tentou receber o valor combinado por um serviço prestado ao pastor. Bretas, que é branco, ficou furioso e o teria chamado de “macaco fedorento”. “Fiquei muito abalado. Achei estranho um pastor falar daquele jeito comigo”, lamenta. A dívida, segundo ele, era de apenas 370 reais. Aconselhado por amigos, Santos resolveu prestar queixa contra o pastor, que foi condenado em primeira instância a pagar uma indenização de R$ 5 mil. Recorreu e o processo continua em andamento.


Discurso racista – Mulher, negra e favelada. Foi com estes predicados pessoais que uma certa Benedita da Silva lançou-se na política, em 1982, concorrendo a uma vaga de vereadora no Rio de Janeiro. Conseguiu eleger-se e, de lá para cá, não parou mais, galgando vários cargos públicos até então inéditos para uma afrodescendente – deputada, senadora, governadora e finalmente ministra – e tornando-se a principal referência negra da Igreja brasileira. Atualmente morando nos Estados Unidos, Benedita, 62 anos, não esconde uma constatação: “Aqui, a Igreja negra se impõe. No Brasil, não. Onde você encontra negros na liderança das igrejas?”, questiona. De fato, entre as grandes denominações brasileiras, não há pastores negros em posição de efetivo comando. “A Igreja brasileira vive o mito da igualdade racial”, aponta.
Benedita diz que, historicamente, o negro brasileiro sempre desejou enquadrar-se aos padrões da sociedade branca. Ela sentiu isso literalmente na pele. “Lembro-me que, quando criança, cheguei a tomar banho com água sanitária e a me raspar com telha, para ver se clareava”, lembra, divertida. Contudo, logo ela percebeu que só a tomada de consciência e a mobilização seriam capazes de mudar alguma coisa. Para Benedita, cabe à Igreja cristã papel fundamental no processo de inclusão social dos negros, sobretudo nas camadas menos favorecidas. “É natural que uma população que ainda é tão marginalizada, como é o caso dos negros deste país, encontre no Evangelho conforto espiritual para seus conflitos e revoltas”. Por outro lado, ressalva, os evangélicos devem evitar reproduzir um discurso comum ao movimento negro – aquele que prega que a identidade racial está ligada às religiões afrodescendentes. “Isso não é democrático. Os africanos que se converteram ao islamismo ou ao catolicismo não deixaram de ser africanos por isso. Portanto, ninguém é mais ou menos negro pela religião que professa”, sentencia.
“Temos como tarefa maior a quebra do mito de que nossos antepassados africanos somente trouxeram crenças baseadas nos orixás”, faz coro a professora Maria da Fé Silva Viana, coordenadora da Pastoral de Combate ao Racismo da Igreja Metodista, uma denominação de vanguarda em relação a temas sociais. Ela acredita que os crentes reproduzem, a seu modo, preconceitos raciais. “Nossa literatura religiosa ainda tem figuras de negros e negras apenas em situações engraçadas ou vexatórias. Usamos linguagem racista, como o termo denegrir, e associamos ao diabo a cor preta”, avalia.
Até mesmo certas distorções bíblicas propagadas pelos evangélicos colaboram para manter vivo o preconceito. O livro do Gênesis é, neste sentido, um dos mais manipulados da Bíblia. Nele há a narrativa da maldição proferida por Noé contra seu filho primogênito Cam – “Escravo de escravos será para seus irmãos”, condenou o patriarca. Especula-se que Cam seria um elemento negróide. Pior é a versão racista dada ao castigo que Caim recebeu de Deus por ter assassinado seu irmão, Abel. A Bíblia diz que o Senhor pôs-lhe um sinal para que, fugitivo, não fosse reconhecido e morto pelo crime que cometera. Pois há pastores que garantem que a tal marca teria consistido em... ser transformado num negro. “Essas são algumas das muitas mentiras para justificar a escravidão e a discriminação”, protesta o pastor e doutor em sociologia Paulo de Sousa Oliveira, de São Paulo. “A Palavra de Deus, em nenhum momento, autoriza segregação.” Para o teólogo e historiador Walter Passos, de Salvador (BA), falta mais informação sobre o tema. “Na minha opinião, os seminários deveriam introduzir no currículo uma cadeira de teologia negra”, sugere. Ele tem até um livro com este título.


Inclusão religiosa – É inegável, por outro lado, que as igrejas têm obtido avanços quanto à inserção da cultura negra na sua liturgia. São cada vez mais comuns, por exemplo, músicas de louvor em ritmos como rap, raggae e samba. Os instrumentos de percussão – agogô, afoxé e bongô, entre outros –, outrora malvistos por conta de suas associações com os terreiros de umbanda, são usados em muitos cultos. Até mesmo a capoeira, típico esporte originado de lutas africanas, tem encontrado seu espaço entre os evangélicos. Em Santos, no litoral de São Paulo, a Associação de Capoeira Nova Visão, dirigida pelo Mestre Chocolate, faz o maior sucesso. Chocolate, ou melhor, Altair José dos Santos, diz que ao se converter havia abandonado a capoeira por acreditar que a prática seria incompatível com sua fé. Mas voltou atrás quando um grupo de pastores visitou sua igreja, a Presbiteriana Independente Getsêmani. “Eles contaram que faziam roda na rua e, quando enchia de gente para ver, paravam o jogo e falavam de Jesus”.


Em 1989, ele decidiu montar uma academia de capoeira dentro da própria igreja. “Deus nos deu a Nova Visão para transformar o meio onde vivemos”, acredita. Segundo o capoeirista, a idéia incomodou alguns crentes. “Certa vez, uma irmã me disse que preferia me ver bem longe da igreja”, confessa. Mas ele não desistiu – conquistou a confiança da igreja e hoje os frutos do trabalho são muitos. Nas rodas, as músicas ao som do berimbau são todas com temas evangelísticos. Chocolate também adquiriu respeito entre os capoeiristas da região, tornando-se o presidente da Liga Santista.
Embora, tradicionalmente, os grupos em favor da consciência negra sejam ligados às religiões de matriz africana, hoje já é possível ver crentes militando em entidades do gênero. A Sociedade Cultural Missões Quilombo, por exemplo, é coordenada pelo capixaba Hernani da Silva, membro da Igreja Pentecostal O Brasil para Cristo. Hernani conta que se sentiu motivado a trabalhar com a questão quando, em 1988, viu a passeata em comemoração ao Centenário da Abolição. “Fiquei emocionado em ver tantos negros juntos. Comecei a chorar e Deus falou ao meu coração que aquele era meu ministério”, lembra. De lá para cá, ele tem se destacado no combate ao racismo dentro das igrejas evangélicas. Recentemente, foi homenageado pelo prestigiado jornalista Gilberto Dimenstein em seu livro Heróis invisíveis, que registra a trajetória de 50 personagens anônimos que lutam pela transformação social de suas comunidades.
Hernani, em conjunto com outros grupos, comemorou a Semana da Consciência Negra, em novembro do ano passado, com palestras sobre temas como “Cristianismo africano”, “Liturgia negra” e “Consciência negra e a Igreja”, entre outros. As discussões foram realizadas simultaneamente em diversas cidades, etre elas, Salvador, Rio e São Paulo. Para ele, tal movimentação não tem apenas resultados teóricos, mas práticos – pelo menos, no sentido de despertar o negro evangélico para pequenas coisas do dia-a-dia que, embora despercebidas, embutem elevada dose de preconceito racial. “Cheguei a ver uma criança negra raspar o braço para ver se retirava a cor de sua pele. Ela havia aprendido que os pecadores possuem um coração negro”.


“Nariz chato” – No bairro de Cidade Tiradentes, um dos mais carentes e violentos da capital paulista, o pastor Djalma Correa, da Igreja do Evangelho Quadrangular, costuma discutir a questão racial com sua comunidade. “Muitas pessoas acreditam que falar sobre racismo é provocar divisão. Eu mesmo já fui muito incompreendido por isso”, revela. O pastor diz que já foi discriminado por ser negro: “Em outra igreja onde congregava, um senhor chegou para mim e disse que eu não poderia pregar porque tinha o nariz chato e por causa da suposta maldição de Caim”. Djalma, que também trabalha como assistente social na região, já percebeu que, para ser bem aceito nas igrejas, o crente negro deve passar por um processo de branqueamento, ou seja, precisa esquecer suas raízes e sua cultura, substituindo-as pelos moldes brancos.
A igreja que dirige, em sua maioria formada por afrodescendentes, tem conseguido mudar um pouco da dura realidade local. “Nossos jovens têm se conscientizado que através de muito estudo, dedicação e, é claro, fé, poderemos mudar nossa condição social”, aponta o pastor. Tal transformação também é o objetivo dos acadêmicos da Escola Superior de Teologia (EST), em São Leopoldo (RS), região de forte predominância étnica branca, já que foi colonizada basicamente por alemães e italianos. A EST é ligada à Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB). Lá, desde 1995 funciona o Grupo Identidade, sob o comando da estudante Selenir Gonçalves Kronbauer. “É um espaço de convivência e auxílio mútuo durante o período de formação”, explica.
O grupo participou do último Fórum Social Mundial de Porto Alegre, em janeiro, com uma mesa de debates intitulada “Pistas para uma leitura afro-descendente da Bíblia”. Sendo uma igreja fundada por europeus e de muita tradição entre os descendentes dos imigrantes, é natural que a IECLB possua poucos negros entre seus pastores e membros. “Mas a nossa idéia não é fundar uma comunidade exclusivamente voltada para negros”, explica Selenir, que é afrodescendente. “Racismo e preconceito são problemas sociais cujos efeitos e soluções também devem incluir os brancos e outros grupos”, defende. Na mesma linha de rejeição ao exclusivismo vai o pastor Sérgio Melo, da Azusa – Igreja de Deus em Cristo, em São Paulo. A comunidade é uma extensão da igreja americana Church of God in Christ, que fica em Memphis, no Tennessee (EUA). Foi lá que o célebre pastor e ativista negro Martin Luther King Jr pregou pela última vez, em 1968, um dia antes de ser assassinado na sacada do hotel onde estava hospedado.
O pastor lembra que igrejas étnicas costumam florescer em ambientes mais radicais. “Não devemos esquecer que o que levou a Igreja americana a essa postura foi a questão da discriminação, o que não seria saudável no nosso país”, continua. No entanto, o pastor, que tem entre os membros de sua igreja uma maioria afrodescendente, não deixa o tema de lado e realiza treinamentos entre pastores que queiram implantar um ministério voltado a fortalecer as raízes negras no meio evangélico. “A Igreja precisa contextualizar seu discurso no que se refere à questão da negritude”, opina.
Mas se ainda falta um longo caminho para que o elemento negro usufrua plenamente de sua cidadania e dignidade sociais, dentro e fora da Igreja, muitos paradigmas têm sido quebrados em relação à questão racial. Até mesmo a tradicional figura de Cristo que povoa o imaginário coletivo – branco, de olhos e cabelos claros – vem sendo, digamos, redesenhada. No fim do ano passado, o jornal inglês New Nation, uma publicação destinada à comunidade negra britânica, listou as cem personalidades negras mais influentes da História. Evidentemente, mitos como Martin Luther King e Nelson Mandela estavam lá. Mas adivinhem quem encabeçava a lista? Jesus Cristo. Ele foi eleito o mais importante negro de todos os tempos. Exageros panfletários à parte, o fato é que a simples suposição de que o Filho de Deus, quando viveu na Terra, possa ter pertencido a outro grupo étnico que não o branco já é um grande avanço. E afinal de contas, a eventual cor da pele do Salvador não tem nenhuma importância diante do que ele fez, não é mesmo? (Colaborou Carlos Fernandes)


A polêmica das cotas
Desde que o governo federal sinalizou a possibilidade de instituir cotas nas universidades públicas para estudantes negros e indígenas, em 2003, manifestações dos mais diversos setores da sociedade eclodiram, tanto a favor quanto contra. Mais que um simples debate, o tema enveredou-se por um terreno espinhoso, colocando em xeque conceitos antes aceitos pela maioria da sociedade, como o de que o Brasil seria uma democracia racial.
Pela proposta do governo, que tramita no Congresso, as instituições públicas de ensino superior são obrigadas a reservar metade de suas vagas a estudantes egressos de escolas públicas, além de elementos negros, pardos e indígenas. Seria uma forma compensatória de inclusão social, já que a proporção desses alunos que se formam a cada ano é pelo menos cinco vezes menor do que estudantes brancos. O grande problema é definir quem realmente é negro num país onde a miscigenação racial já vem do tempo da colonização.
Enquanto o Legislativo estuda a medida, algumas instituições, como a Universidada de Brasília e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro já adotaram o sistema de cotas, em fase experimental. Só que a seleção dos vestibulandos carece de critérios técnicos, baseando-se somente na declaração do candidato acerca de sua origem étnica. A Justiça já tem sido procurada pelos dois lados – há estudantes que se dizem negros reclamando o direito às cotas e estudantes que se consideram brancos e se queixam de que foram preteridos, embora aprovados pela nota, em favor dos cotistas. Reitores de universidades públicas já se mostraram favoráveis à implementação de cotas, desde que o número de vagas aumente. Caso contrário, argumentam, o modelo pode vir a excluir quem, pelo mérito, teria direito às vagas. É uma discussão que vai longe. (Claiton Cesar)


Uma Igreja cada vez mais negra
O número de membros negros nas igrejas evangélicas só é inferior ao de afrodescendentes católicos se forem levados em conta os números absolutos. Eles são 55 milhões entre os 125 milhões de fiéis da Igreja Romana. Os números, levantados pelo pastor e escritor Marco Davi de Oliveira e publicados em seu livro A religião mais negra do Brasil, apontam que as igrejas evangélicas, em especial as do segmento pentecostal, têm arregimentado muitos fiéis entre os indivíduos de etnia negra (assim são considerados, estatisticamente, as pessoas pardas e pretas). Segundo as amostragens do Censo 2000, as igrejas evangélicas somam cerca de 12 milhões de negros – ou seja, algo como 45% do total de evangélicos do país. As igrejas pentecostais e neopentecostais somam 8,6 milhões de membros negros.


Negros, ativistas e protestantes
“Eu tenho um sonho”, frase pronunciada num célebre discurso do pastor americano Martin Luther King Jr, entrou para a história. Ativista negro, ele enfrentou um dos mais duros períodos de segregação racial nos Estados Unidos, durante as décadas de 1940, 50 e 60. Na época, negros não podiam freqüentar as mesmas escolas que os brancos e a Ku-Klux-Klan, entidade racista, promovia atentados e perseguições. Doutor em filosofia e ministro batista, King cedo envolveu-se na luta pelos direitos civis dos cidadãos negros. Sua campanha contra as empresas de ônibus de Atlanta, que restringiam o acesso de afrodescendentes aos seus coletivos, chamou a atenção para o tema.
Preso duas vezes, o pastor ativista virou uma celebridade. Os atos públicos que promoveu atraíram multidões – caso da Marcha sobre Washington, em 1964, que reuniu 200 mil pessoas e abriu caminho para a promulgação da Lei dos Direitos Civis. Sua atuação valeu-lhe o Prêmio Nobel da Paz. Mas o pastor foi assassinado quatro anos depois, num hotel de Memphis, no Tennessee, onde participava de ato político.
Outro célebre defensor dos direitos dos negros é Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul. Ele liderou a luta contra a política do apartheid (“separação”) que vigorou naquele país por quase 40 anos. Convertido ao metodismo na infância, Mandela saiu de sua tribo, os themba, e iniciou sua militância contra os interesses econômicos que mantinham as grandes potências mundiais alheias ao problema racial. Colonizada por britânicos, a África do Sul era dominada por uma minoria branca, que impunha toda sorte de discriminações à majoritária população negra.
Nelson Mandela iniciou um levante contra o governo racista sul-africano. Preso em 1961, foi condenado à prisão perpétua. Na cadeia, tornou-se ícone da negritude. Os clamores internacionais por sua libertação enfraqueceram o regime do apartheid. Solto em 1990, ele juntou-se ao então presidente Frederik de Klerk, branco, para costurar um governo multirracial. Sua luta foi reconhecida com o Nobel da Paz de 1993. No ano seguinte, Mandela foi eleito presidente de seu país, consolidando as mudanças por que tanto se batera. Hoje, aos 86 anos, Mandela é uma lenda viva.
Aqui no Brasil, um episódio ocorrido no início do século 20 elevou o então anônimo marinheiro João Cândido Felisberto à condição de herói anti-racismo. Filho de ex-escravos, ele liderou um movimento contra as discriminações impostas pela Armada brasileira aos marujos negros – além de receberem soldos menores e menos alimentação, os de cor, como eram chamados, sofriam até castigos físicos ante qualquer deslize. A chamada Revolta da Chibata, fomentada por Cândido, tomou o controle de quatro navios ancorados na Baía de Guanabara, no Rio. Os amotinados ameaçavam bombardear a então sede do governo federal, no Palácio do Catete.
Após um acordo com o governo, que prometera abolir os maus tratos e anistiar os revoltosos, Cândido e seus companheiros foram presos e expulsos da Marinha. Mas o ex-marujo virou uma celebridade. Até marchinhas de carnaval o homenagearam com o título de Almirante Negro. Cândido passou a ganhar a vida como pescador e biscateiro, carregando a fama de subversivo até sua morte, em 1969. O que poucos sabem é que, segundo o historiador baiano Walter Passos, anos após a sua expulsão das Forças Armadas, João Cândido se converteu ao Evangelho. Ele chegou a freqüentar a Igreja Metodista de São João de Meriti, na Baixada Fluminense.


Avivamento inter-racial
O chamado Avivamento da Rua Azusa, ocorrido em Los Angeles, nos EUA, há 100 anos, foi um dos mais importantes movimentos evangélicos da história da Igreja. No raiar do século 20, a sociedade americana, impregnada pelo racismo, presenciou uma onda carismática varrer as igrejas do país. E à frente do movimento estava justamente um pastor negro, William Joseph Seymour. De origem humilde, cego de um olho e sem formação escolar, Seymour chegou a ser discriminado na igreja – para assistir aulas numa escola bíblica freqüentada por brancos, ele tinha que se sentar no corredor, enquanto ouvia as explicações através da porta entreaberta da sala.
Após ser expulso de uma congregação afro-americana por pregar a doutrina pentecostal, Seymour iniciou uma série de reuniões inter-raciais em uma residência particular. À medida que a notícia sobre curas e milagres espirituais se espalhou, cresceu também o número de pessoas nos cultos. O grupo então mudou-se para uma estrebaria desativada na Rua Azusa. Ali, pessoas de todo o país e até do exterior vinham presenciar a manifestação do poder de Deus.
Apesar do avivamento, a questão racial provocava situações bizarras. Seymour tinha o cuidado de dispor os bancos em círculo, para que os freqüentadores negros não dessem as costas aos brancos. Como nem todos os crentes brancos aceitavam que o pastor orasse por eles, Seymour, para evitar constrangimentos, costumava ajoelhar-se atrás do púlpito feito com caixas de sapatos e orar dali. Enciumados da liderança espiritual exercida por aquele negro, os outros pastores da cidade passaram a evitá-lo. Seymour não era convidado para pregar nem participar de convenções. Quando ia a um culto, sequer tinha sua presença anunciada. Mesmo assim, William Seymour continuou com a missão da Rua Azusa – que se tornou uma igreja quase toda negra – até sua morte, em 1922.(Marcos Stefano)
Fonte: Eclesia

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