por: Manuel Alexandre Junior
Liberalismo e fundamentalismo são palavras e conceitos que se instalaram no vocabulário do mundo cristão há mais de um século. Carreiam, por isso, o natural desgaste semântico da sua utilização e foram dando lugar a novas terminologias para dizer, no fundo, a mesma coisa, embora em função dos respectivos contextos.
No tempo dos apóstolos, bastava o termo cristão para designar o discípulo de Cristo e o identificar com a sua mensagem e ministério. Muitos desses cristãos passaram a chamar-se evangélicos, não só por estarem prontos a dar a vida pelo evangelho, mas também para se demarcarem do sistema romano de cristandade após a legalização constantiniana do cristianismo1. A necessidade de se encontrar uma outra designação só muito recentemente se fez sentir perante o influxo crescente do liberalismo no seio das comunidades e instituições protestantes ou evangélicas. Essa designação, como sabemos, foi a de fundamentalismo aplicado a quantos sustentavam e defendiam os grandes fundamentos da fé cristã, em clara fidelidade às suas primeiras origens.
Fundamentalismo foi o movimento que nasceu no princípio do século XX para marcar de vez a sua oposição ao liberalismo, significando, à partida, uma clara e indefectível adesão aos grandes fundamentos do cristianismo histórico, nomeadamente: (1) a inerrância bíblica; (2) a divindade de Jesus Cristo; (3) o nascimento virginal de Cristo; (4) a morte vicária de Cristo, que ele morreu para redimir a humanidade; (5) a ressurreição física de Cristo e a esperança da segunda vinda. Não se trata de um termo de reacção meramente atribuído à linha dura dos conservadores que se recusavam a cooperar com os liberais. Encarna, sim, um conceito mais profundo com implicações de carácter histórico, doutrinário e ético2.
O movimento fundamentalista nasceu, de facto, nos dias em que o liberalismo ousou começar a instalar-se no seio das comunidades cristãs e a tomar de assalto igrejas e escolas denominacionais de teologia, pondo sobretudo em causa a autoridade das Escrituras. No princípio, repito, fundamentalista era identificação clara com os fundamentos da fé bíblica e oposição firme ao modernismo racionalista. Por outras palavras, era o mesmo que ser chamado cristão no sentido mais puramente bíblico da igreja primitiva. Mas o termo fundamentalismo foi assumindo outros contornos semânticos e acumulando significados mais radicais à medida que se ia usando para representar condutas extremas de intolerância e violência mais fora do que dentro do próprio cristianismo3.
Três são a fases de expressão por que o movimento passou até aos nossos dias no seio da família evangélica. As primeiras duas décadas representam uma identificação saudável com as suas origens. No intuito de manterem a sã doutrina e libertarem igrejas e instituições de influências da teologia liberal, a qual se firmava na interpretação naturalista das doutrinas da fé, na alta crítica alemã e no darwinismo, os seus mentores publicaram e publicitaram doze pequenos livros chamados Os Fundamentos4.
Nas décadas de 30 a 70, o desgaste que o nome sofreu pela sua conotação com tendências de intolerância e anti-intelectualismo, levou muitos fundamentalistas a demarcarem-se do movimento e a preferirem simplesmente chamar-se evangélicos. E porque os termos fundamentalismo e evangelicalismo significam no fundo a mesma coisa, neo-evangelicalismo foi o nome que entretanto vingou entre os seus representantes, por se demarcarem de três movimentos: (1) da neo-ortodoxia, porque aceitaram a autoridade da Bíblia; (2) do modernismo, porque se demarcaram da teologia liberal e abraçaram em pleno o sistema ortodoxo da doutrina bíblica; (3) e de alguns excessos de fundamentalismo, porque sustentaram que tanto a doutrina como a ética bíblica têm na sua mensagem uma forte componente de ordem social. Carl Henry, por exemplo 5, lamenta o facto de os fundamentalistas proclamarem a fé pessoal em Cristo e valorizarem códigos de conduta individual, sem darem a devida atenção aos grandes temas da justiça social em resposta ao imperativo de fazerem chegar a plenitude da verdade divina à totalidade da vida humana: corpo, mente, alma e espírito6. Segundo ele, os fundamentalistas estavam mais preocupados com questões de piedade pessoal do que com as gritantes necessidades da civilização. Tão envolvidos se encontravam na luta contra o modernismo que, nas palavras de Ockenga, se arriscavam não só a cultivar a atitude e estratégia erradas, como também a colher os resultados mais negativos do seu labor espiritual7.
Mas estas críticas nem a todos pareceram justas; primeiro, porque deram a entender que os fundamentalistas eram todos iguais e que os problemas entre modernismo e fundamentalismo se haviam atenuado ou mesmo dissipado; segundo, porque tais concessões poderiam vir a destruir a essência do próprio evangelicalismo. Felizmente que dos anos 80 para cá se desenvolveu e aprofundou o diálogo entre os evangélicos da grande família conservadora, e com efeitos bem mais positivos no âmbito da sua batalha espiritual comum. Mas o facto é que também se extremaram posições, com deslizes ainda mais acentuados tanto no sentido do liberalismo como no de um suposto neo-fundamentalismo, que tende a reduzir o evangelho a um sectarismo estreito, censório e anti-intelectual que erradamente circunscreve os horizontes da verdade revelada e se afasta da posição fundamentalista original8.
A teologia liberal, por outro lado, tem as suas raízes no iluminismo; movimento filosófico que desde o século XVII vinha enfatizando a supremacia do livre pensamento, da razão pura e da capacidade de todo o ser humano para progredir e se aperfeiçoar por si mesmo9. No largo espectro de ideias que a teologia liberal representa, são de salientar as seguintes. (1) A Bíblia dá testemunho de Deus, mas não é revelação directa de Deus nem é, no sentido rigoroso do termo, a Palavra de Deus; e, como tal, ela deve interpretar-se como obra literária em seu contexto histórico, com base numa análise crítica fundada nos pressupostos filosóficos da nossa cultura, e especialmente direccionada para as afirmações de Jesus sobre paz, justiça, compaixão e amor. (2) Os relatos bíblicos são primariamente simbólicos, não sendo necessariamente credíveis do ponto de vista científico e histórico. (3) A ciência moderna é, também ela, fonte de revelação no que respeita às leis que governam o universo e a vida. (4) A humanidade não herdou fisicamente o pecado original, e Satanás não existe. (5) O homem é obra de um Deus bom e permanece inerentemente bom em progresso constante até à perfeição10.
Ora com o evoluir do Iluminismo, foi-se instalando a dúvida em torno dos principais temas da fé cristã. A credibilidade dos Evangelhos foi posta em causa. Insinuouse que estes não eram a história verdadeira de Jesus, mas apenas histórias acerca de Jesus; histórias escritas mais tarde do que realmente foram, e entretanto impregnadas de mitos, lendas e tradições várias11. Insinuavam os mentores desta nova ideia que o verdadeiro Jesus de Nazaré se oculta por detrás de uma enorme massa de informação duvidosa, que Ele não foi mais do que uma importante figura religiosa do seu tempo e que a real imagem dessam figura precisa de ser redescoberta. Muitas foram, pois, as tentativas de reconstrução da vida de Jesus, especialmente a partir de Reimarus (1694-1768), para quem o Senhor Jesus não era mais do que um sábio moralista que procurou cumprir os ideais do reino, e que por engano acreditou ser o Messias. Contam-se entre essas obras, numa primeira fase, as vidas de Jesus escritas por Strauss,12 Renan13 e Schweitzer;14 obras de uma crítica radical espantosamente fértil nas questões que levantaram, mas para as quais até hoje não avançaram com respostas científicas palpáveis que satisfaçam ou convençam, nem mesmo a comunidade académica a que pertencem. À medida que a fé nos Evangelhos ia sendo minada, sugeria-se a distinção teológica entre o Jesus histórico15 e o Cristo da fé16: entre o Jesus histórico, de quem diziam tão pouco se saber, e o Cristo da fé, que para eles nada mais era do que o produto de uma construção imaginária e idealizada da igreja17.
Uma das expressões mais radicais da teologia liberal surgiu recentemente encarnada no movimento revisionista do chamado Jesus Seminar18, o qual questiona a autenticidade dos Evangelhos e rejeita quase tudo o que os evangelhos afirmam que Jesus disse19 ou fez20.
Trata-se de uma nova ideologia pagã onde não há mais lugar para Cristo, nem para o evangelho de Cristo, nem sequer para a tradição cristã.21 As conclusões deste grupo de críticos foram posteriormente divulgadas em vinte e uma teses, das quais aqui destaco apenas doze:22 (1) Não existe um deus exterior ao mundo material; (2) O darwnismo matou de vez a doutrina de uma criação especial conforme a narrativa bíblica; (3) A desliteralização da narrativa bíblica das origens acabou de vez com o dogma do pecado original; (4) Os milagres de Jesus são uma afronta à justiça e integridade de Deus; (5) Jesus não é divino; (6) A ideia de Jesus como redentor é fantasiosa e arcaica; (7) Jesus não ressuscitou dos mortos; (8) O nascimento virginal de Jesus é um insulto à inteligência moderna; (9) Não existem mediadores entre Deus e o homem; (10) O reino de Deus é uma viagem sem fim e uma perpétua odisseia; (11) A Bíblia não contém modelos objectivos de conduta; (12) As reconstruções da pessoa e obra de Jesus podem ser sempre modificadas23.
DINÂMICA E PROBLEMÁTICA DE UMA TENSÃO
Liberalismo e fundamentalismo eram basicamente as únicas posições sustentadas pela maioria dos protestantes e evangélicos do século XX até ao surgimento da neoortodoxia.
Mas esse não foi desde então o caso. As variantes e sensibilidades cristãs das últimas décadas dentro de cada um destes sistemas são cada vez mais acentuadas. A unidade deixou de existir quer no liberalismo quer no conservadorismo24. Há um mundo de diferença entre os que se afirmaram fundamentalistas em 1909 e em sete anos produziram uma série de manifestos sobre os princípios fundamentais de fé cristã, e alguns ditos fundamentalistas de hoje. Muitos, porém, dos que assim são chamados permanecem lúcida e equilibradamente fiéis aos mesmos princípios, valores e ideais por que se bateram os fundadores deste movimento cristão, cujo único anseio foi mesmo o regresso às origens.
Até finais do século XIX, os ataques desferidos contra o Cristianismo eram ataques vindos de fora: ataques de inspiração filosófica e científica: Ataques filosóficos de carácter racionalista como os de Descartes, Espinosa e Leibniz, que alcandoraram a razão e afrontaram a crença na revelação objectiva da Bíblia; Ataques filosóficos de carácter naturalista e materialista como os de Dewey e Hobbes, que puseram em causa o sobrenatural e passaram a justificar e explicar tudo com base em causas naturais; E ataques de fundamento e inspiração científica como os de Copérnico e Darwin, que reduziram o homem ao plano do puramente animal e esvaziaram o mundo de um Deus criador que cuida da sua criação25. Em vez de olharem para o homem como um ser caído, depravado e pecador, esses mentores do liberalismo imaginaram-no a progredir até à perfeição sem qualquer necessidade de um ser sobrenatural.
Mas os ataques teológicos que deles derivaram, esses foram ataques à ortodoxia cristã a partir de dentro26, em consequência da dupla visão materialista e humanista da contorcida interpretação das Escrituras que então se fazia, com base em pressupostos ideológicos e filosóficos de matriz pagã ou neo-pagã. Teólogos cristãos houve, que bem cedo começaram a aplicar à Bíblia o que os filósofos e cientistas de então propuseram como critérios de verdade numa perspectiva de alta crítica eminentemente destrutiva. O Velho Testamento foi inteiramente reconfigurado com a escola de Wellhausen de modo a pôr em causa a sua credibilidade e genuinidade. O Novo Testamento igualmente de novo se reescreveu de modo a justificar miticamente a chamada presença do sobrenatural.
Partindo do falso conceito de uma "metafísica de presença", afirmou-se a seguir um conjunto de axiomas universais que a intelectualidade vigente podia perceber e aceitar à margem da prova científica; uma espécie de verdade que não precisa de ser transmitida por descoberta científica, formulação filosófica ou revelação divina. Estes são para eles os axiomas ou crenças ditos fundacionais com base nos quais se explica a realidade27. E assim se foi reconfigurando o modernismo racionalista e liberal que em nossos dias se agiganta e mais agrada à pós-modernidade. Um modernismo que tem raízes filosóficas pré-cristãs em Platão e Aristóteles, mas jamais no cristianismo original ou mesmo tradicional.
Segundo Downing28, deu-se, com isto, uma mudança radical de paradigma.
Segundo Agostinho de Hipona, "compreensão é o galardão da fé. Procura, portanto, não compreender para que possas crer, mas sim crer para que possas compreender", escreveu ele. Reflectindo o modelo bíblico do que é fundamental e fundacional, Santo Agostinho repetidamente identifica a Verdade com uma pessoa, Jesus Cristo, e não com uma ideia.
Por isso, convictamente exorta: "Procura, pois, não compreender para que possas crer, mas sim crer para que possas compreender". É isso que Jesus Cristo ensina quando diz: "Eu sou o caminho, a verdade e a vida…" (Jo. 14:6). "Se permaneceis na minha palavra, sois verdadeiramente meus discípulos; conhecereis a verdade e a verdade em pessoa vos libertará" (Jo. 8:31-32). E tanto as cartas de João como as de Paulo reiteram a importância, não de conhecer a verdade, mas de andar na verdade (I Jo. 1:6; II Jo. 4; III Jo. 3-4); isto é, em comunhão com a pessoa que é a encarnação da Verdade, a real encarnação da realidade última do Ser, que é Deus.
Mas, segundo o paradigma do modernismo iluminista e racionalista, a verdade constrói-se sobre um fundamento empírico de pedras exclusivamente ligadas pela argamassa da razão. No século XVII, os arquitectos deste edifício ainda consentiram em deixar Cristo como pedra angular. No século XVIII, colocaram a razão à volta da pedra angular cobrindo e ocultando Cristo por completo. Nos séculos XIX e XX, os modeladores e reformadores do sistema modernista golpearam a pedra, partiram-na em pedaços até que por completo a fragmentaram e neutralizaram29. Segundo eles, Jesus não era uma pedra sólida porque os seus milagres desafiam a razão, e as suas acções e afirmações nem sempre empiricamente se provam.
A casa do liberalismo tem, pois, muitos apartamentos e é ocupada por várias espécies de ditos cristãos racionalistas ou modernistas30. No fundo, todos eles são desmitologizadores das Escrituras, tendo ornamentado as suas residências com os pressupostos anti-sobrenaturais do iluminismo, do positivismo e do naturalismo, e revendo-se nas palavras de Rudolf Bultmann que em 1941 escreveu: "Não podemos usar luzes eléctricas e rádios, ou socorrer-nos dos recursos da medicina moderna na doença, e ao mesmo tempo crer no mundo espiritual e maravilhoso do Novo Testamento"31.
Para o modernista só existe o que se observa na natureza, o ser humano é a realidade suprema, o conhecimento constrói-se pelo raciocínio crítico com base no método científico, e é pelo conhecimento que o homem vence progressivamente os problemas e se aperfeiçoa, constrói as suas certezas, desvenda as leis do universo e se afirma como a medida mais completa e absoluta da verdade. A própria hipótese do sobrenatural fica sujeita ao seu escrutínio. Mas, curiosamente, a ideologia do pós-modernismo parece hoje admitir o contrário. Como diz Erickson, o pós-modernismo é um movimento intelectual que emana do próprio modernismo e o suplanta, acabando por defender muitas das teses que aquele combateu e reconhecer em muitos casos a validade das teses do prémodernismo, que acreditava haver um propósito no universo, um Deus omnipotente,
omnipresente e omnisciente que tudo criou e sustenta incluindo a própria raça humana.
Para o pós-modernista, de facto, o conhecimento é incerto, o progresso é uma ilusão, o método científico é falível, a verdade é relativa e a razão não a explica, nem a realidade última do ser por ela se atinge.
Esta é apenas uma ténue imagem da fragilidade e contradição das ideologias religiosas com que se bate hoje o cristianismo. No terreno, a realidade é bem mais complexa e contraditória. A própria distância entre esquerda e direita evangélica é tão abismal que os matizes intermédios são inúmeros e, em muitos casos, os extremos se tocam32.
CONSEQUÊNCIAS ÉTICAS E ESPIRITUAIS NO HORIZONTE DE UMA REAL ORTOPRAXIA
Nos últimos séculos, o Cristianismo transformou-se numa religião verdadeiramente global, e cresce a um ritmo duas vezes superior ao da população do mundo. Mas é surpreendente o número dos que se afirmam cristãos sem viverem o que Cristo ensinou e levarem a sério todo o conselho de Deus nas suas vidas. Como pôde o terrível massacre de seis milhões de Judeus ter lugar na alma e no coração desta velha Europa cristã? Como foi possível ocorrer uma tão horrenda carnificina tribal no Rwanda, onde se diz que 80% da população de Hutus e Tutsis eram cristãos? Como entender as terríveis lutas fratricidas entre croatas católicos e sérvios ortodoxos na antiga Jugoslávia33?
Não obstante a ênfase do liberalismo na tónica do evangelho social, o século XX foi tudo menos a concretização de uma utopia. Não foi um século de progresso, mas de retrocesso: as duas guerras mundiais; o massacre de milhões de arménios; a chacina de milhões de chineses; as permanentes tensões em todos os continentes; a constante ameaça de uma catástrofe nuclear; as inúmeras mortes provocadas por doenças novas e sem controlo; a desintegração dos valores cristãos, e a pouca esperança quanto ao dia de amanhã eloquentemente o mostram. E o século XXI? Que mal desponta logo nos faz mergulhar num mundo de insegurança e horror? O 11 de Setembro em Nova Iorque, as tensões permanentemente inflamadas do Médio Oriente, a cruel e imprevisível guerra do Iraque são apenas sinais do infindável poder cósmico do mal; um poder de que o Evangelho de Cristo é bem consciente, tal como do seu debilitante efeito sobre a vida humana, tanto nas estruturas política, económica e social, como nas estruturas espiritual e familiar. Tudo nos indica que à medida que o Cristianismo se afasta do paradigma bíblico original, ele se descristianiza e conforma com um paganismo latente que teima em ressurgir, acabando por cair no vazio moral e espiritual da contracultura do pósmodernismo e da secularização.
O Jesus histórico e o Cristo da fé são uma e a mesma pessoa. É necessário que todos reconheçam que Jesus Cristo é Senhor, e que é por Ele que passa a redenção do universo, incluindo todas as estruturas da existência34. Pois, como escreve o apóstolo Paulo aos Colossenses, “aprouve a Deus reconciliar consigo mesmo por Jesus Cristo todo o universo, na terra como nos céus, havendo feito a paz pelo seu sangue derramado na cruz” (1:20). Uma das grandes conclusões da ciência pós-moderna é a de que não existe um centro para o universo, um centro que tudo justifica e explica. Os filósofos concluem que todas as coisas são relativas. Ora com base neste conceito de relativismo, a teologia liberal procura justificar a sua proposta de ‘pluralismo’ ideológico na crença de que nenhuma religião ou doutrina religiosa se deve considerar melhor do que as outras. Mas, como evangélicos, nós sempre afirmámos e continuamos a afirmar a interpretação apostólica da centralidade de Cristo35. Esta mensagem é a estrutura de fé pela qual nós vemos, interpretamos e entendemos tanto o mundo como a própria vida. Deus em Cristo fez-se parte da criação para remi-la. E também por esta razão Ele é o centro do universo, aquele que criou e dá sentido à vida, aquele que pela sua encarnação, morte e ressurreição reconciliou todas as coisas consigo mesmo, para glória de Deus Pai.
CONCLUSÃO
Hoje, como no passado, há um mundo de diferença entre cristianismo e cristandade.
Duas visões distintas de Deus e da sua Palavra, duas visões distintas de Cristo e da sua cruz, duas visões distintas da igreja e do reino de Deus, duas visões distintas da fé e do discipulado cristão36.
Vivemos num tempo em que velhos paradigmas se esboroam e outros novos
gradualmente se instalam37. As igrejas de Cristo já passaram várias vezes por situações semelhantes às que agora enfrentam. Nada há novo debaixo do sol e todas essas crises nada mais são do que crises recicladas.
Como acabámos de recordar, o cristianismo esteve dividido por mais de um século entre liberais e fundamentalistas ou conservadores; os primeiros, cultivando uma espécie de fé secularizada e desviante da essência do cristianismo nascente; os segundos, batendose pela sã doutrina, cumprindo uma missão excelente na proclamação e defesa da verdade, mas nem sempre harmonizando ortodoxia com ortopraxia e tantas vezes se rendendo à cultura do presente século38. Esse é o desafio que cada um de nós continua a receber. O evangelho de Cristo não se materializa num cristianismo de mera cristandade. Na pureza cristalina das suas origens, ele se proclama e expande como poder transformador da própria cultura que é boa nova para os pobres, dá liberdade aos cativos e anuncia o ano aceitável do Senhor. O liberalismo acomodou-se à cultura materialista e secular, deixou-se servilmente acorrentar por uma forma de neo-paganismo que não só vira as costas ao sobrenatural e se limita a construir um mundo sem Deus, mas também declara o homem como medida de todas as coisas, e ao mesmo tempo o afirma refém de si mesmo, perdido nos meandros de uma vida sem sentido e pronto a abalar as estruturas mais sagradas da sua própria existência.
Num tempo de tão claras mudanças como é o nosso; num tempo em que novas revoluções vertiginosamente se fazem sentir em todas as áreas da vida – na ciência, na filosofia e nas comunicações; num tempo em que o maravilhoso pagão parece querer afirmar-se como alternativa à fé cristã, é necessário retomar em pleno o paradigma universal que Cristo inspirou e os apóstolos encarnaram, para de novo fazer germinar em nossa cultura os princípios e valores do Evangelho. Nós não fomos chamados a reinventar a fé cristã, mas sim a ser fiéis às suas origens. Se o nome em que nos revemos ou com que nos alcunham é o de conservador ou fundamentalista, que importa? A nossa missão é servir Cristo e defender a todo o custo os princípios e valores sagrados do evangelho; esse evangelho que é Boa Nova e poder de Deus para a salvação de todo aquele que Crê; esse mesmo evangelho que simultaneamente é doutrina e vida, fé e acção, testemunhado pela palavra e pelo exemplo, em constante fidelidade e obediência a Jesus Cristo nosso único Salvador, Mediador e Senhor.
Fonte: Portal Evangélico
1 Craig A. Carter, Rethinking Christ and Culture: A Post-Christendom Perspective, Grand Rapids, Brazos
Press, 2006.
2 Robert P. Lightner, Neo-evangelicalism, Findlay, Ohio: Dunham Publishing Company, s.d., pp. 21-33. Cf.
Millard J. Erickson, The Evangelical Left: Encounterig Postconservative Evangelical Theology, Grand
Rapids, Baker Books, 1997, pp. 11-31.
3 Robert P. Lightner, Neo-evangelicalism, Findlay, Ohio: Dunham Publishing Company, s.d., pp. 35-46.
4 Charles L. Feinberg (ed.), The Fundamentals for Today, 2 volumes, Grand Rapids: Kregel Publications,
1958. A Terceira publicação de The Fundamentals. Cf. Stewart G. Cole, The History of Fundamentalism,
New York: Harper and Brothers, 1931.
5 Carl F. H. Henry, gods of this Age, or… God of the Ages? Nashville: Broadman & Holman Publishers,
1994, pp. 103-129.
6 Carl F. H. Henry, The Uneasy Conscience of Modern Fundamentalism, Grand Rapids: Eerdmans, 2003, pp.
16-18.
7 Millard J. Erickson, The Evangelical Left: Encountering Postconservative Evangelical Theology, Baker
Books: Grand Rapids, 1997, pp. 22-24.
8 Cf. Stanley J. Grenz, "Prelúdio do Pós-modernismo", in Pós-modernismo: Um Guia para Entender a
Filosofia do nosso Tempo, São Paulo: Edições Vida Nova, 1997
9 Millard J. Erickson, Postmodernizing the Faith: Evangelical Responses to the Challenge of Postmodernism
Grand Rapids: Baker Books, 1998, pp. 23-41.
10 Ibid., "The Challenge of Postmodernism" (Historical Background), pp. 14-18.
11 Cf. Craig A. Evans, Fabricating Jesus: How Modern Scholars Distort the Gospels, Downers Grove,
Illinois: InterVarsity Press, 2006. Especialmente as pp. 19-33; 222-235.
12 D. F. Strauss, The Life of Jesus Critically Examined, 1835.
13 E. Renan, Life of Jesus, 1863.
14 Albert Schweitzer, The Quest of the Historical Jesus, 1906.
15 O “Jesus histórico”, ou Jesus da história ou Jesus de Nazaré, é o Jesus que os historiadores da era moderna
esperam recuperar pelo uso de métodos históricos que se supõem cientificamente orientados.
16 O “Cristo da fé” é o Jesus Cristo em quem o povo creu ao longo da história da igreja.
17 “New Testament and Mythology”, in Hans Werner Bartsch, ed., Kerygma and Myth, 2 vols., 2nd ed.,
London: SPCK, 1962, pp. 1-44.
18 Robert Funk, John Dominic Crossan e outros. Hoje, o Jesus Seminar tem setenta e cinco membros e cerca
de dois mil e quinhentos associados que o suportam com suas contribuições.
19 Oitenta e dois por cento das palavras atribuídas a Jesus nos evangelhos não foram, segundo o ‘Jesus
Seminar,’ realmente proferidas por ele (The Five Gospels: The Search for the Authentic Words of Jesus, New
York, Scribner, 1996, p. 5.
20 Esta abordagem é sustentada pela adopção de uma distinção rígida entre o Jesus da história e o Cristo da
fé. Segundo ela, «the early church’s faith in Christ so influenced the story of the historical Jesus…that when
they retold it, all factuality was lost. As a result, the Gospel records cannot be considered factual accounts of
historical events, but fanciful fictions of faithfull followers.» (Michael J. Wilkins and J. P. Moreland, «The
Furor Surrounding Jesus», in Jesus under Fire.Modern Scholarship Reinvents the Historical Jesus, Grand
Rapids, Zondervan, 1995, p. 4).
21 Mark Tooley, “Radical Jesus Seminar reaches out to local churches”, The Layman Online, November 22,
1999, p.2. Ousam inclusivamente dizer que Jesus foi ‘cristianizado’ durante os quarenta anos entre a sua
morte e a escrita do Evangelho segundo Marcos.
22 Vide Mark Tooley, op. cit., p. 3.
23 Robert Funk, "The Coming of Radical Reformation: Twenty One Theses", The Fourth R 11:4, Polebridge
Press, 1998: http://www.westarinstitute.org/Periodicals/4R_Articles/Funk_Theses/funk_theses.html. Cf.
"Who does the Jesus Seminar Really Speak for?": http://www.christiananswers.net/q-eden/
edn-t017.html; "Unmasking the Jesus Seminar": http://www.markdroberts.com/htmfiles/resources/
unmaskingthejesus.htm.
24 Millard J. Erickson, The Evangelical Left: Encountering Postconservative Evangelical Theology, Grand
Rapids: Baker Books, 1997, pp. 19-26.
25 Robert P. Lightner, Neo-evangelicalism, Findlay, Ohio: Dunham Publishing Company, sd, pp. 24-28.
26 Robert P. Lightner, op. cit., pp. 28-33.
27 Crystal L. Downing, How Postmodernism Serves (my) Faith: Questioning Truth in Language, Philosophy
and Art, Downers Grove, Illinois: IVP Academic, 2006, pp. 100-102; 104-106.
28 Ibid., pp. 101-104.
29 Ibid., pp. 101-102.
30 Ibid., pp. 103-109.
31 Rudolf Bultmann, "The New Testament and Mithology: The Problem of Demythologizing the New
Testament Proclamation", in New Testament and Mythology and other Basic Writings, Philadelphia, Fortress
Press, 1984, p. 4.
32 Cf. Millard J. Erickson, The Evangelical Left: Encountering Postconservative Evangelical Theology,
especialmente o capítulo 6: "Where to from Here?", Grand Rapids: Baker Books, 1997, pp. 131-147.
Também, em perspective diferente: Craig A. Carter, "Jesus or Constantine", in Rethinking Christ and
Culture: A Post-Christendom Perspective, Grand Rapids: Brazos Press, 2006, pp. 199-212.
33 Ronald J. Sider, Genuine Christianity: Essentials for Living Your Faith, Grand Rapids: Zondervan
Publishing House, 1996, pp. 12-16; 181-183.
34 Cf. Michael J. Wilkins and J. P. Moreland (eds.), Jesus Under Fire: Modern Scholarship Reinvents the
Historical Jesus, Grand Rapids: Zondervan Publishing House, 1995, pp. 1-5,7; 231-232.
35 Donald G. Bloesch, God the Almighty: Power, Wisdom, Holiness, Love, Downers Grove, Illinois:
InerVarsity Press, 1995, pp. 21-30; 205-240.
36 Craig A. Carter, Rethinking Christ and Culture: A Post-Christendom Perspective, Grand Rapids: Brazos
Press, 2006, pp. 207-212.
37 Cf. Harold O. J. Brown, The Sensate Culture: Western Civilization Between Chaos and Transformation,
Dallas/London/Vancouver/Melbourne: Word Publishing, 1996; esp. pp. 1-25; 217-238.
38 Cf. Alister McGrath, A Passion for Truth: The IntellectualCoherence of Evangelicalism, Downers Grove,
Illinois: InterVarsity Press, 1996.
[Notícia n.º 3254,, inserida em 2007-03-18, lida 3784 vezes.]
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