terça-feira, dezembro 22, 2009

A oração que enoja

por Marcos Soares
Amigos, andei ausente do meu posto na Colunet. Assuntos não faltaram. Faltou mesmo a antiga disciplina. Teve morte de gente famosa, acidente aéreo, Prêmio Nobel da Paz pro Obama, vitória do Brasil para sediar as Olimpíadas e a Copa do Mundo, Campeonato Brasileiro com resultados espúrios. Um pouco de tudo. Para fechar o ano com chave de lama, não podia ter faltado o Mensalão do DF.
Nada que surpreenda, porque onde temos Galho de Arruda, tudo pode acontecer. Já vem dos tempos de sabotagem no painel do Senado a fama que o acompanha. Não assusta, também, porque corrupção virou lugar comum. Já está incorporada à vida nacional. Será mesmo que devemos nos acostumar à idéia e achar que isso nunca terá solução? A impunidade campeia, o direito neste país está mais torto do que roda de bicicleta velha e a infeliz tendência é de que aconteça o de sempre: nada. Nebuloso agora, somente para daqui a pouco ser esquecido por uma nova onda de denúncias, o escândalo do DF vem embrulhado em panetones populares.
Agora veio a lume uma nova categoria de propina. Devia existir antes, mas agora é oficial, tem chancela de gravação, audiovisual etc. É coisa fina. Para ninguém botar defeito. Para não deixar dúvidas. Quando a gente pensa que já se chegou ao fundo do poço, aí, sim (diria Zagallo), somos surpreendidos novamente. Ainda tem como afundar mais. A novidade é a corrupção com oração. A propina convertida. Recebe-se a grana, enfia-se nos bolsos ou onde couber. Terminada a chamada “parte material”, vem a parte “espiritual”. Uma beleza. Abram aspas, por favor. Não quero os direitos autorais de tão sacrossanta pérola escondida:
"Pai, quero te agradecer por estarmos aqui, sabemos que nós somos falhos, somos imperfeitos, mas é o teu sangue que nos purifica. Pai, nós somos gratos pela vida do Durval ter sido instrumento de bênção para nossas vidas, para essa cidade. Tantas são as investidas, Senhor, de homens malignos contra a vida dele, contra nossas vidas. Nós precisamos da Tua cobertura e dessa Tua graça, da Tua sabedoria, de pessoas que tenham, Senhor, armas para nos ajudar essa guerra. Acima de tudo, Senhor, todas as armas que podem ser falhas, todos os planejamentos podem falhar, todas as nossas atividades, mas o Senhor nunca falha."
Quem chegou agora e pegou só essa parte é capaz de dar uns “glórias!”e gritar uns “aleluias!” Olha que exemplo de fidelidade, de amor à causa, de união e de visão estratégica. Dá até para imaginar que o volume de igrejas evangélicas no Distrito Federal e no resto do Brasil esteja mesmo fazendo uma diferença na nação. Quando eu disse uma vez durante uma pregação que até mesmo as práticas devocionais mais nobres podiam ser transformadas em canalhice pelo ser humano, houve quem se sentisse escandalizado. Fui acusado de pregar contra a oração, o culto, o jejum e as demais práticas de devoção espiritual. Esqueceram-se de que o próprio Senhor já havia alertado para o fato de existir mais de uma razão para que uma pessoa ore. Oração, simplesmente, não passa de um ato de religiosidade. Pessoas de todas as seitas, credos e religiões oram. Isso não faz de todas elas pessoas que se relacionam com o Deus único e verdadeiro. Nem todo mundo que faz preces está sendo ouvido no céu.
Conhecendo o entorno da reportagem as dúvidas que ficam são várias. Qual seria, afinal, a “guerra” dessa gente? Contra quem estão lutando e o que querem conquistar? Os “homens malignos” que contra os tais investem, seria o Ministério Público ou a Polícia Federal? Esquentando um pouco a discussão, o que seriam as “bênçãos para essa cidade”? Quem está sendo assim tão beneficiado pelo esquema ora escancarado? Acima de tudo, quem seria o “Pai” a quem se refere o sujeito? O Pai das luzes, em quem não há variação nem sombra de mudanças? Ou seria o pai da mentira? Porque o primeiro, o Pai de verdade, diz categoricamente que “não age com parcialidade nem aceita suborno” (Dt 10:17). Qualquer ímpio sabe disso.
O escândalo presente faz mais uma vez necessária uma reflexão profunda. A igreja de Deus no Brasil (e no mundo inteiro, de fato) precisa aprender definitivamente a andar longe da tentação do poder e do dinheiro fácil. A proposta feita pelo diabo a Jesus no deserto foi prontamente rechaçada por ele, mas tem sido aceita por muitos: “tudo isso te darei, se prostrado me adorares”. Na tentativa de estabelecer seus impérios, em detrimento da expansão do Reino de Deus, muita gente passou a justificar a promiscuidade em todos os níveis. A corrupção passou a tomar conta, o dinheiro passou a falar mais alto.
Isso se manifesta até mesmo com aqueles que tentam controlar o ministério dos outros com suas ofertas. Conheço mais de um caso em que algum endinheirado só daria oferta para este ou aquele ministério, para este ou aquele missionário se ele fizesse isso ou aquilo. Tenho um amigo que recebeu uma tentadora proposta de sustento, desde que ele fosse para onde o “patrocinador” desejasse. Esta é igualmente uma forma de corromper. E quem faz isso não pode agora levantar a voz para atacar os crápulas do DF. Eles não deixam de ter seu próprio Mensalão.
Outros grupos alçam vôos mais altos e, portanto, mais perigosos e mais visíveis. Querem tentáculos na Assembléia Legislativa. Querem eleger Senadores. Querem chegar à Presidência. Já falei aqui o que penso sobre isso. Respeito quem discordar, mas eu jamais votei numa pessoa simplesmente porque ele era ou se dizia “crente”. Isso não quer dizer nada. Deveria dizer, mas não diz. Da mesma forma que eu não escolho um médico ou advogado ou pedreiro pela profissão de fé, senão pela sua competência profissional, não tenho motivo nenhum para escolher um administrador público ou legislador só porque ele carrega uma Bíblia debaixo do braço. Até porque, como provam os vídeos em tela, está cheio de gente levando a Bíblia em um bolso e a propina no outro. Não percebemos ainda que a maioria dos eleitos pelos chamados “evangélicos” nada mais querem do que o mesmo que todos os outros que lá estão. Consciência política, sim. Massa de manobra, não.
Exceções há, e são honrosas. Pode haver cristãos sérios na política. Julgo legítimo o interesse político inclusive dos cristãos, apesar de ter dificuldades em entender como se possa fazer diferença no sistema partidário brasileiro atual. A história nua e crua mostra que o sal da terra e a luz do mundo não andam salgando nem iluminando. Andam, ao contrário, trazendo vergonha. Talvez porque sejam o reflexo daqueles que os elegeram e da igreja que não fica no Congresso, mas em cada esquina deste país.
Há  um fundo de verdade na oração do sujeito, mesmo porque dizer alguma verdade não é muito difícil. Até um relógio parado está certo duas vezes por dia. Difícil é viver alguma verdade. Ele conclui com a frase: o Senhor nunca falha. Este é um fato inescapável. Ele não falha mesmo. Não deixa uma só de suas palavras caírem por terra. Por sinal, ele deixa certas coisas bem claras:
  • “Horrível coisa é cair na mão do Deus vivo”;
  • “De Deus não se zomba: aquilo que o homem semear, isto também ceifará”;
  • “A seu tempo lhes há de falar”;
  • “Não há nada oculto que não venha a ser revelado”;
  • “Ai dos que torcem o direito”;
  • “Pois eu sei quantas são as suas transgressões e quão grandes são os seus pecados. Vocês oprimem o justo, recebem suborno e impedem que se faça justiça ao pobre nos tribunais”.
  • “Ai dos que fazem leis injustas”
Nessas horas, o Senhor deve repetir as palavras que já proferiu aqui na terra, andando no meio de uma geração incrédula e perversa: “até quando vos sofrerei?” (Mt 17:17)

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